domingo, dezembro 10, 2006

Traição

Por Well, a Ninfeta das Sombras

Marco admirou seu próprio sorriso no espelho de prata,sim era o homem mais feliz do mundo.Afinal ele tinha tudo.Era o senhor de uma bela e fértil terra,possuía um grupo de servos leais e fieis e agora Isabelle aceitara ser sua...Para sempre sua.Vestindo seu melhor traje ele desceu a longa escadaria de pedra que levava ao jardim.Ao longe pode ver o manto escarlate de Isabelle,ela sorriu ao recebê-lo.Sentados a beira do lago eles observavam os crocodilos tomando sol na outra margem.Qualquer coisa que caísse naquelas água seria imediatamente devorada por aqueles animais escuros e encantados que protegiam o maior tesouro do reino de Marco,o santo Graal dos séculos.Ele podia ser visto a poucos centímetros da água cristalina,sobre uma bancada de mármore.
Deitada com a cabeça no colo de Marco,Isabelle brincava de tocar o anel de Marco,o anel de rubi e prata,única coisa que abriria o selo sobre o santo cálice.Sorrindo ela falou.
- Por que não me deixa tocar agora que vou ser sua mulher?Será que esse anel está acima do nosso amor?
Ainda meio receoso ele tirou o anel colocando-o na delicada mão de Isabelle.Os olhos dela brilharam ao ter a jóia nas mãos.Levantando ela lhe olhou com sincera pena,substituída por um sorriso sarcástico.Seu rosto se contrai e ela diz palavras estranhas.Logo mais onze belas damas a cercam,todas com sorrisos maldosos parecendo conspirar contra ele.
- Irmãs conseguimos...A imortalidade,esta a um passo,graças a esse tolo! – Diz Isabelle apontando Marco.
- Ah Isabelle...Pobre Isabelle,você e sua corgia de bruxas são mais patéticas do que eu havia pensado... – Marco caminha tranqüilamente ate uma arvore próxima chamando. – Guardas!
- Matamos seus guardas querido... – Diz Isabelle com aspecto triunfante.
- Ah minha cara,isso não é possível,eles já estavam mortos!Eu mesmo os matei,a 200 anos...Mas contar a historia seria forçar demais sua bela cabecinha... – Marco fala enquanto os guardas se aproximam,eles são pálidos e tem ferimentos de faca na garganta,dos ferimentos corre um sangue coagulado e seus dentes são afiados.
- Chamou senhor? – Diz o capitão da guarda.
- Ah claro,trouxe carne fresca para vocês...Elas são linda,poderosas e a carne deve ser ótima...Boa diversão...
Os guardas se aproximam das bruxas que se vêem impossibilitadas de fugir.Marco vai ao encontro de Isabelle que grita assustada.Ele a pega pelos cabelos levando-a ao lago,ela tenta se libertar mas só é arrastada com mais força.Os crocodilos estranhamente não se aproximam enquanto Marco arrasta Isabelle para o meio.Em direção ao Graal.Isabelle é jogada na plataforma do cálice enquanto vê suas irmãos serem violentadas e comidas vivas pelos guardas.Ela chora,Marco colhe suas lagrimas com o cálice,depois puxa ainda mais seu cabelo,fazendo com que ela fique com que seu pescoço ficasse exposto,ele fez um pequeno corte deixando o sangue correr para dentro do Graal.Em lagrimas ela murmurou.
- Por que?
- Porque você é linda,jovem,poderosa...Levemente cruel...Deliciosa.E eu ainda não estou pronto para morrer. – Dizendo isso ele a atirou no lago,os crocodilos se aproximaram.A primeira mordida cerrou seu ombro,a outra pegou na barriga,Isabelle gritou se sufocando com a água,quando esta invadiu seus pulmões seu corpo ardeu,a mandíbula do crocodilo se abriu perto do seu rosto então ela não viu mais nada.

*****

Niniane estava radiante,seus sonho tinham se realizado.Ela iria casar com Marco e mudariam para o flet dele.Ele a levara para jantar no restaurante mais caro da cidade,então a levara ao mirante.Agora sob a luz do luar,ele lhe sorria enquanto lhe mostrava o estranho cálice verde.
- Sabe o que é isso Niniane?É o Graal...
- E o que ele faz? – Ela perguntou enquanto o via se aproximar com um sorriso estranho.
- Ah eu já vou te mostrar. – Ele sacou o punhal,o grito de Niniane cortou a escuridão...

sábado, novembro 18, 2006

O BARRIL DE AMONTILLADO

Do grande mestre Edgar Allan Poe

Suportei o melhor que pude as injúrias de Fortunato; mas, quando ousou insultar-me, jurei vingança. Vós, que tão bem conheceis a natureza de meu caráter, não havereis de supor, no entanto, que eu tenha proferido qualquer ameaça. No fim, eu seria vingado. Este era um ponto definitivamente assentado, mas a própria decisão com que eu assim decidira excluía qualquer idéia de perigo. Assim devia apenas castigar, mas castigar impunemente. Uma injúria permanece irreparada, quando o castigo alcança aquele que se vinga. Permanece, igualmente, sem reparado, quando o vingador deixa de fazer com que aquele que o ofendeu compreenda que e ele quem se vinga. É preciso que se saiba que, nem por meio de palavras, nem de qualquer ato, dei a Fortunato motivo para que duvidasse de minha boa vontade. Continuei, como de costume, a sorrir em sua presença, e ele não percebia que o meu sorriso, agora, tinha como origem a idéia da sua imolação. Esse tal Fortunato tinha um ponto fraco, embora, sob outros aspectos, fosse um homem digno de ser respeitado e, até mesmo, temido. Vangloriava-se sempre de ser entendido em vinhos. Poucos italianos possuem verdadeiro talento para isso. Na maioria das vezes, seu entusiasmo se adapta aquilo que a ocasião e a oportunidade exigem, tendo em vista enganar os milionários ingleses e austríacos. Em pintura e pedras preciosas, Fortunado, como todos os seus compatriotas, era um intrujão; mas, com respeito a vinhos antigos, era sincero. Sob este aspecto, não havia grande diferença entre nós - pois que eu também era hábil conhecedor de vinhos italianos, comprando-os sempre em grande quantidade, sempre que podia. Uma tarde, quase ao anoitecer, em plena loucura do carnaval, encontrei o meu amigo. Acolheu-me com excessiva cordialidade, pois que havia bebido muito. Usava um traje de truão, muito justo e listrado, tendo à cabeça um chapéu cônico, guarnecido de guizos. Fiquei tão contente de encontrá-lo, que julguei que jamais estreitaria a sua mão como naquele momento.
- Meu caro Fortunato - disse-lhe eu -, foi uma sorte encontrá-lo. Mas, que bom aspecto tem você hoje! Recebi um barril como sendo de Amontillado, mas tenho minhas duvidas. - Como? - disse ele. - Amontillado? Um barril? Impossível! E em pleno carnaval! - Tenho minhas duvidas - repeti - e seria tolo que o pagasse como sendo de Amontillado antes de consultá-lo sobre o assunto. Não conseguia encontrá-lo em parte alguma, e receava perder um bom negócio. - Amontillado! - Tenho minhas dúvidas. - Amontillado! - E preciso efetuar o pagamento. - Amontillado! - Mas, como você esta ocupado, irei a procura de Luchesi. Se existe alguém que conheça o assunto, esse alguém e ele. Ele me dirá . . . - Luchesi e incapaz de distinguir entre um Amontillado e um Xerez. - Não obstante, ha alguns imbecis que acham que o paladar de Luchesi pode competir com o seu. - Vamos, vamos embora. - Para onde? - Para as suas adegas. - Não, meu amigo. Não quero abusar de sua bondade. Penso que você deve ter algum compromisso. Luchesi. . . - Não tenho compromisso algum. Vamos. - Não, meu amigo. Embora você não tenha compromisso algum, vejo que esta com muito frio. E as adegas são insuportavelmente úmidas. Estão recobertas de salitre. Apesar de tudo, vamos. Não importa o frio. Amontillado! Você foi enganado. Quanto a Luchesi, não sabe distinguir entre Xerez e Amontillado.
Assim falando, Fortunato tomou-me pelo braço. Pus uma máscara de seda negra e, envolvendo-me bem em meu roquelaire, deixei-me conduzir ao meu palazzo. Não havia nenhum criado em casa, pois que todos haviam saído para celebrar o carnaval. Eu lhes dissera que não regressaria antes da manhã seguinte, e lhes dera ordens estritas para que não arredassem pé da casa. Essas ordens eram suficientes, eu bem o sabia, para assegurai o seu desaparecimento imediato, tão logo eu lhes voltasse as costas. Tomei duas velas de seus candelabros e, dando uma a Fortunato, conduzi-o, curvado, através de uma seqüência de compartimentos, à passagem abobadada que levava à adega. Chegamos, por fim, aos últimos degraus e detivemo-nos sobre o solo úmido das catacumbas dos Montresor. O andar de meu amigo era vacilante e os guizos de seu gorro retiniam a cada um de seus passos. - E o barril? - perguntou. - Está mais adiante - respondi. - Mas observe as brancas teias de aranha que brilham nas paredes dessas cavernas. Voltou-se para mim e olhou-me com suas nubladas pupilas, que destilavam as lágrimas da embriaguez. - Salitre? - perguntou, por fim. - Salitre - respondi. - Há quanto tempo você tem essa tosse? Meu pobre amigo pôs-se a tossir sem cessar e, durante muitos minutos, não lhe foi possível responder. - Não é nada - disse afinal. - Vamos - disse-lhe com decisão. - Vamos voltar. Sua saúde é preciosa. Você é rico, respeitado, admirado, amado; você é feliz, como eu também o era. Você é um homem cuja falta será sentida. Quanto a mim, não importa. Vamos embora. Você ficará doente, e não quero arcar com essa responsabilidade. Além disso, posso procurar Luchesi . . . - Basta - exclamou ele. - Esta tosse não tem importância; não me matará. Não morrerei por causa de uma simples tosse. -É verdade, é verdade - respondi. - E eu, de fato, não tenho intenção alguma de alarmá-lo sem motivo. Mas você deve tomar precauções. Um gole deste Medoc nos defenderá da umidade. E, dizendo isto, parti o gargalo de uma garrafa que se achava numa longa fila de muitas outras iguais, sobre o chão úmido. - Beba - disse, oferecendo-lhe o vinho. Levou a garrafa aos lábios, olhando-me de soslaio. Fez uma pausa e saudou-me com familiaridade, enquanto seus guizos soavam. - Bebo - disse ele - à saúde dos que repousam enterrados, em torno de nós. - E eu para que você tenha vida longa. Tomou-me de novo o braço e prosseguimos. - Estas cavernas - disse-me - são extensas. - Os Montresor - respondi - formavam uma família grande e numerosa. - Esqueci qual o seu brasão. - Um grande pé de ouro, em campo azul. O pé esmaga uma serpente ameaçadora, cujas presas se acham cravadas no salto. - E a divisa? - Nemo me impune lacessit. - Muito bem! - exclamou. O vinho brilhava em seus olhos e os guizos retiniam. Minha própria imaginação se animou, devido ao Medoc. Através de paredes de ossos empilhados, entremeados de barris e tonéis, penetramos nos recintos mais profundos das catacumbas. Detive-me de novo e, essa vez, me atrevi a segurar Fortunato pelo braço, acima do cotovelo. - O salitre! - exclamei. - Veja como aumenta. Prende-se, como musgo, nas abóbadas. Estamos sob o leito do rio. As gotas de umidade filtram-se por entre os ossos. Vamos. Voltemos, antes que seja tarde demais. Sua tosse... - Não é nada - respondeu ele. - Prossigamos. Mas, antes, tomemos outro gole do Medoc. Parti o gargalo de uma garrafa de vinho De Grâve a dei-a a Fortunato. Ele a esvaziou de um trago. Seus olhos cintilaram com brilho ardente. Pôs-se a rir e atirou a garrafa para o ar, com gesticulação que não compreendi. Olhei-o, surpreso. Repetiu o movimento, um movimento grotesco. - Você não compreende? - perguntou. - Não, não compreendo - respondi. - Então é porque você não pertence à irmandade. - Como? - Não pertence à maçonaria. - Sim, sim. Pertenço. - Você? Impossível! Um maçom? - Um maçom - respondi. - Prove-o - disse ele. - Eis aqui - respondi, tirando de debaixo das dobras de meu roquelaire uma colher de pedreiro. - Você está gracejando! - exclamou recuando alguns passos. - Mas prossigamos: vamos ao Amontillado. - Está bem - disse eu, guardando outra vez a ferramenta debaixo da capa e oferecendo-lhe o braço. Apoiou-se pesadamente em mim. Continuamos nosso caminho, em busca do Amontillado. Passamos através de uma série de baixas abóbadas, descemos, avançamos ainda, tornamos a descer e chegamos, afinal, a uma profunda cripta, cujo ar, rarefeito, fazia com que nossas velas bruxuleassem, ao invés de arder normalmente. Na extremidade mais distante da cripta aparecia uma outra, menos espaçosa. Despojos humanos empilhavam-se ao longo de seus muros, até o alto das abóbadas, à maneira das grandes catacumbas de Paris. Três dos lados dessa cripta eram ainda adornados dessa maneira. Do quarto, os ossos haviam sido retirados e jaziam espalhados pelo chão, formando, num dos cantos, um monte de certa altura. Dentro da parede, que, com a remoção dos ossos, ficara exposta, via-se ainda outra cripta ou recinto interior, de uns quatro pés de profundidade, três de largura e seis ou sete de altura. Não parecia haver sido construída para qualquer uso determinado, mas constituir apenas um intervalo entre os dois enormes pilares que sustinham a cúpula das catacumbas, tendo por fundo uma das paredes circundantes de sólido granito. Foi em vão que Fortunato, erguendo sua vela bruxuleante, procurou divisar a profundidade daquele recinto. A luz, fraca, não nos permitia ver o fundo. - Continue - disse-lhe eu. - O Amontillado está aí dentro. Quanto a Luchesi . . . - É um ignorante - interrompeu o meu amigo, enquanto avançava com passo vacilante, seguido imediatamente por mim. Num momento, chegou ao fundo do nicho e, vendo 0 caminho interrompido pela rocha, deteve-se, estupidamente perplexo. Um momento após, eu já o havia acorrentado ao granito, pois que, em sua superfície, havia duas argolas de ferro, separadas uma da outra, horizontalmente, por um espaço de cerca de dois pés. De uma delas pendia uma corrente; da outra, um cadeado. Lançar a corrente em torno de sua cintura, para prendê-lo, foi coisa de segundos. Ele estava demasiado atônito para oferecer qualquer resistência. Retirando a chave, recuei alguns passos. - Passe a mão pela parede - disse-lhe eu. - Não poderá deixar de sentir o salitre. Está, com efeito, muito úmida. Permita-me, ainda uma vez, que lhe implore para voltar. Não? Então, positivamente, tenho de deixá-lo. Mas, primeiro, devo prestar-lhe todos os pequenos obséquios ao meu alcance. - O Amontillado! - exclamou o meu amigo, que ainda não se refizera de seu assombro. - É verdade - respondi -, o Amontillado. E, dizendo essas palavras, pus-me a trabalhar entre a pilha de ossos a que já me referi. Jogando-os para o lado, deparei logo com uma certa quantidade de pedras de construção e argamassa. Com este material e com a ajuda de minha colher de pedreiro, comecei ativamente a tapar a entrada do nicho. Mal assentara a primeira fileira de minha obra de pedreiro, quando descobri que a embriaguez de Fortunato havia, em grande parte, se dissipado. O primeiro indício que tive disso foi um lamentoso grito, vindo do fundo do nicho. Não era o grito de um homem embriagado. Depois, houve um longo e obstinado silêncio. Coloquei a segunda, a terceira e a quarta fileiras. Ouvi, então, as furiosas sacudidas da corrente. O ruído prolongou-se por alguns minutos, durante os quais, para deleitar-me com ele, interrompi o meu trabalho e sentei-me sobre os ossos. Quando, por fim, o ruído cessou, apanhei de novo a colher de pedreiro e acabei de colocar, sem interrupção, a quinta, a sexta e a sétima fileiras. A parede me chegava, agora, até a altura do peito. Fiz uma nova pausa e, segurando a vela por cima da obra que havia executado, dirigi a fraca luz sobre a figura que se achava no interior. Uma sucessão de gritos altos e agudos irrompeu, de repente, da garganta do vulto acorrentado, e pareceu impelir-me violentamente para trás. Durante breve instante, hesitei... tremi. Saquei de minha espada e pus-me a desferir golpes no interior do nicho; mas um momento de reflexão bastou para tranqüilizar-me. Coloquei a mão sobre a parede maciça da catacumba e senti-me satisfeito. Tornei a aproximar-me da parede e respondi aos gritos daquele que clamava. Repeti-os, acompanhei-os e os venci em volume e em força. Fiz isso, e o que gritava acabou por silenciar. Já era meia-noite, a minha tarefa chegava ao fim. Completara a oitava, a nona e a décima fileiras. Havia terminado quase toda a décima primeira - e restava apenas uma pedra a ser colocada e rebocada em seu lugar. Ergui-a com grande esforço, pois que pesava muito, e coloquei-a, em parte, na posição a que se destinava. Mas, então, saiu do nicho um riso abafado que me pôs os cabelos em pé. Seguiu-se-lhe uma voz triste, que tive dificuldade em reconhecer como sendo a do nobre Fortunato. A voz dizia: - Ah! ah! ah! . . . eh! eh! eh! . . . Esta é uma boa piada... uma excelente piada! Vamos rir muito no palazzo por causa disso . . . ah! ah! ah! . . . por causa do nosso vinho... ah! ah! ah! - O Amontillado! - disse eu. - Ah! ah! ah! . . . sim, sim . . . o Amontillado. Mas não está ficando tarde? Não estarão nos esperando no palácio. . . a Sra. Fortunato e os outros? Vamos embora. - Sim - respondi -, vamos embora. - Pelo amor de Deus, Montresor! - Sim - respondi -, pelo amor de Deus! Mas esperei em vão qualquer resposta a estas palavras. Impacientei-me. Gritei, alto: - Fortunato! Nenhuma resposta. Tornei a gritar: - Fortunato! Ainda agora, nenhuma resposta. Introduzi uma vela pelo orifício que restava e deixei-a cair dentro do nicho. Chegou até mim, como resposta, apenas um tilintar de guizos. Senti o coração opresso, sem dúvida devido à umidade das catacumbas. Apressei-me para terminar o meu trabalho. Com esforço, coloquei em seu lugar a última pedra - e cobri-a com argamassa. De encontro à nova parede, tornei a erguer a antiga muralha de ossos. Durante meio século, mortal algum os perturbou. In pace requiescat!

sexta-feira, novembro 17, 2006

UM INCÊNDIO IMPERFEITO

Autor: Ambrosius Bierce
Tradução: José Jaeger.

Em uma manhã de junho de 1872, bem cedo, assassinei o meu pai, ato que, naquele tempo, me causou uma impressão profunda. Tal se sucedeu antes de meu casamento, quando eu vivia ainda com os meus pais em Wiscosin. Estávamos eu e meu pai na biblioteca de nossa casa, dividindo o produto dum furto que perpetráramos àquela noite, e que consistia sobretudo em trecos domésticos. Apresentava-se sobremodo difícil realizar uma divisão equânime. Nós nos demos muito bem com os panos de mesa, toalhas e coisas afins e chegamos mesmo a dividir a prataria de uma forma deveras justa. Contudo, você pode verificar que, quando pretende dividir em duas, sem deixar restos, uma caixa de música, saberá que terá problemas. Foi essa caixa de música que trouxe a desgraça e a desonra à nossa família. Se a tivéssemos largado no lugar, o meu pai ainda estaria vivo.
Tratava-se de uma peça singular, belamente trabalhada, dotada de valiosas incrustações em madeira e de talhas magnificamente aplicadas. Não apenas executava uma grande variedade de melodias, como, sem que houvesse necessidade de dar-lhe corda, cantava como codorniz, latia como um cão, cacarejava todas as manhãs e recitava os dez mandamentos. Foi justamente esta última aptidão que atraiu os amores de meu pai e o induziu a cometer o único ato desonroso de toda sua vida, embora estivesse inclinado a cometer outros, se fosse poupado: tentou ocultar de mim aquela caixinha de música. E me jurou, por sua honra, que não a furtara, embora eu soubesse muito bem que foi o propósito de consegui-la que o atraíra àquele roubo. Ele escondera a caixinha de música sob a capa – nós vestíamos capas para que não fôssemos reconhecidos –, assegurando-me, solenemente, que não a subtraíra. Eu, porém, bem sabia que ele o fizera e, além disso, guardava o conhecimento de algo que ele, evidentemente, ignorava: se eu conseguisse prolongar a sessão que dedicávamos à divisão dos despojos, a caixa pôr-se-ia a cacarejar, denunciando-o. Tudo sucedeu como eu previra. Quando, na biblioteca, a luz de gás punha-se a fenecer, deixando vagamente as formas das janelas surgir por detrás das cortinas, um som estrepitoso prolongou-se desde a capa que velho usava, seguido de alguns compassos de uma ária de Tannhauser, teminando com com um audível “clic”. Sobre a mesa, entre nós dois, jazia uma machadinha que empregáramos para entrar na desafortunada casa. Ao ver que lhe era inútil continuar em sua dissimulação, o velho sacou a caixa escondida na capa e a depositou na superfície da mesa.
- Parta a caixa em duas, se é isso o que você quer – disse. Eu só pretendia salvá-la da destruição.
Ele era um amante apaixonado pela música, e sabia tocar sanfona com sentimento e expressão Eu falei: - Eu não questiono a pureza de seus motivos; seria presunção de minha parte julgar o meu próprio pai. Mas negócio é negócio e com essa machada vou ultimar a dissolução de nossa sociedade, a não ser que o senhor consinta em levar uma certa vantagem em todos os roubos futuros.
- Não – disse ele, após uma breve reflexão. – Não, eu não poderia fazê-lo. Seria como uma confissão de desonestidade. Diriam que você desconfia de mim.
Não pude deixar de admirar o seu espírito e a sua sensibilidade. Por um momento, senti-me orgulhoso dele e estive disposto a perdoar-lhe o erro, mas, a um relance sobre a caixa de música ricamente trabalhada, tomei uma decisão e, como se diz, “despachei” o velho desde vale de lágrimas. Senti, porém, um certo desassossego. Ele era o meu pai, o autor do seu ser; demais disso, sem dúvida, alguém iria descobrir o corpo. Já era dia claro e minha mãe poderia entrar na biblioteca a qualquer instante. Em tais circunstâncias, achei oportuno “despachá-la” também, o que, igualmente, fiz. Depois, despedi e paguei os empregados domésticos.
Àquela tarde, procurei o chefe de polícia. Contei-lhe o que sucedera e pedi conselho. Seria extremamente doloroso para mim se os fatos fossem publicamente conhecidos. Todos reprovariam a minha conduta, os jornais cairiam sobre mim, isto poderia militar contra a chefatura por ocasião das eleições. O chefe bem assimilou a força de minhas considerações: ele mesmo era um assassino de vasta experiência. Após consultar o juiz da Corte de Jurisdição Variável, aconselhou-me a ocultar os corpos numas das estantes, providenciar um bom seguro para a casa e atear fogo em tudo. E foi isso mesmo o que eu fiz.
Havia, na biblioteca, uma estante que meu pai adquirira, recentemente, a algum inventor desvairado, e que ainda não estava preenchida. Tinha a forma e o tamanho desses armários fora de moda que se vêem nos guarda-roupas sem roupeiro, mas este se abria para baixo, como camisolas de senhoras Era, ademais, guarnecido por portas de cristal. Pouco antes, eu amortalhara os meus pais. Eles já estavam rígidos demais para que pudessem manter-se eretos. Enfiei os dois na estante, cujas prateleiras eu havia removido, travando-os lá. E corri as cortinas sobre as portas de cristal. O inspetor da companhia de seguros passou meia dúzia de vezes em frente a ela sem de nada suspeitar.
Naquela mesma noite, depois de obter a apólice de seguro, deitei fogo à casa e cruzei o bosque, correndo em direção à cidade, a duas milhas de distância, onde cuidei para que fosse visto na hora mais agitada. Uni-me à multidão, gritando as mágoas pela sorte de meus pais, e cheguei ao incêndio duas horas depois de tê-lo provocado. Quando cheguei, correndo, ali já se ajuntava a cidade inteira. A casa havia se consumido completamente, mas a estante ainda estava de pé, no meio das brasas cadentes, intacta. As cortinas arderam se afastaram, exibindo as portas de cristal. Através dela, uma intensa luz rubra iluminava o interior: ali estava o meu pai morto, íntegro como se estivesse ainda vivo e, junto a ele, prostrava-se a sua companheira de sofrimentos e alegrias. Não tinham sequer um pêlo chamuscado e as suas roupas estavam ilesas. Nas cabeças e gargantas apareciam os ferimentos que eu me vira compelido a infligir-lhes para levar a cabo os meus intentos. As pessoas permaneciam em silêncio, como se em presença de um milagre. O respeito e o terror as fizeram emudecer. Até eu mesmo me encontrava extremamente afetado.
Passados uns três anos, quando os feitos acima relatados já quase desvaneciam de minha memória, estive em Nova Iorque para ajudar a passar letras do Tesouro falsificadas. Um dia, olhando despreocupadamente as vitrines de uma loja de móveis, contemplei uma exata reprodução daquela estante.
- Eu a comprei por uma mísera quantia a um inventor arrependido – explicou-me o lojista. – Ele me disse que a estante é à prova de fogo, já que seus poros de madeiras estão cheios de alumínio sob pressão hidráulica e o cristal é de asbesto. De minha parte, não creio que seja à prova de fogo. Você pode tê-la pelo mesmo preço que se paga por uma estante ordinária.
- Não – disse eu. – Se você não me pode garantir que não é à prova de fogo, eu não quero.
Então me despedi, dando-lhe bom-dia.Eu não a teria por preço algum: ela me revivia lembranças sumamente desagradáveis.

segunda-feira, novembro 13, 2006

NECROFÉLIA

Por Lord Edu

Barlock, o vampiro rei, conjurou a densa bruma acima das covas obscuras do cemitério.Além disso o céu cinzento parecia iníquo.Parecia querer passar para um tom vermelho rubro. Barlock clama os inferiores seres para ver a tua morbidez que mata e transborda o teu deleite. Uma moça havia sido a espreita do vampiro por um longo tempo Barlock a queria de qualquer maneira, mas não em buaca de seu sangue.Porém a garota morreu de peste bubônica. Assim foi até mais fácil. Ela foi enterrada neste fim de tarde sob o crepúsculo para violar a pouca bondade e moralidade dos humanos. Quando o último raio de sol se extinguiu da cidade de Além Barlock saiu de sua cripta à procura do túmulo da cândida moça. Achado o túmulo ele pára e contempla a lápide de mármore recém colocada decoradas com rosas brancas e tulipas amarelas, já com os odorores miasmáticos, com os dizeres gravados em baixo-relevo : "Ofélia Lima, Amada filha e irmã, 1832-1849. Então o súcubo vampiro exumou o delicado caixão da sepultura e o abriu. A garota estava pálida e esguia em seu vestido branco, mas ainda possuía uma genuína feição angelical da qual Barlock se encantou. Queria a virgem. Voluptosidade da virgem. Lasciva, excitante, delirante virgem. E teve a virgem. Violou a virgem. Estava realmente obsecado por ela.Queria tê-la viba nos braços para amá-la de verdade. Não era só um capricho de prazer agora era um sentimento incontrolável. Barlock sabia que teria de ir ao necromante abutre Zatorotath que acorda e decifra os mortos. Barlock pega o cadáver no colo e segue para a caverna do necromante na Colina Curwen. O vampiro marchava lentamente em companhia da mulher que amava.Deu um, vento azíago como se fosse a desaprovação de um deus. Quando chegou ao topo da Colina Curwen encontrou Zatorotath ensinando seus dois aprendizes as artes da magia negra.Ao ver Barlock com o corpo perguntou: - O que o traz áté mim criatura bestial? -O amor- respondeu Barlock- de vida a este corpo celestial que sofreu com a ceifa da morte. - Não foi só isso que ela sofreu.Houve uma profanação, os defuntos devem dormir em paz - bradou o feiticeiro da morte. - Faça o que eu mando - Barlock conjurou a sua corja de vampiros ameaçadores para matar o mago se ele não fizesse o serviço imposto - e não me diga em profanação de corpos porque esta é a tua arte.Agora faça. - Teu desejo será feito, mas esta mulher que tu violaste será tão perversa quanto a tua devassidão para com ela.E esta será a tua ruína - previniu o necromante . - Faça logo. O ritual foi feito na Pedra do Sacrifício sobre o cume da Colina.De fato as nuvens cinzas agora estavam escarlates quando Zatorotath recitava as palavras mágicas. Uma mulher renascia, não era mais aquela moça pura e ingênua. Sua inocência fôra perdida quando Barlock a estuprou, atormentando-a em seu sono eterno. Barlock estava encantado com a mulher , estava amando e não deu ouvidos as sábias palavras de Zatorotath , pois o amor o deixou cego. A sedutora mulher largou Barlock e o jogou nas cinzas.O fez em cinzas.Pois o vampiro em sua grande decepção amorosa se matou à luz do sol, porque sua amada mulher preferia saborear a carne dos homens.Doce, quente, vigorosa e efêmera. Vulgar morta-viva imortal Ofélia.

A ÁRVORE NEGRA

Por Lord Edu

Pedro,Tiago e Hugo se embrenharam no Pântano da Salamandra para caçar sapos, rãs e pererecas.Apenas para a distração de suas mentes infantis.Apesar das placas,cercas e das lendas inexoráveis que avisava para ficarem longe, os meninos entraram no misterioso lugar lamacento naquele dia.Entre sorrisos e zombarias os garotos animados com suas bolsas repletas de sapos, iam se aprofundando cada vez mais para o interior do brejo.Ultrapassando assim os limites imposto pelo sobrenatural também.Já tinham quase enchido as mochilas com sapos quando viram algo majestoso, sombrio e horripilante: uma imponente árvore morta no centro de uma lagoa de lama.A árvore tinha a casca negra como o corvo, de altura era pequena, mas o tronco era absurdamente grosso e os galhos esculturais jaziam monstruosos à vista deles.Aquela árvore tinha algo de positivamente detestável, mais do que aparentava. Havia alguma deformidade que afligia as nossas concisas persepções. Uma coisa que incomoda profundamente. No fundo de seus corações os garotos temiam a verdade mortal: a de que a árvore apesar de estar seca tinha uma alma maléfica e um coração atormentante dentro dela.Pequenas vibrações sonorizavam em seus próprios corações uma ressonância absurda e indiscritível dos batimentos da árvore que estava voraz pelas doces carnes perfumadas com sangue.Eles observaram a planta morta por todos os ângulos procurando algo de mais errado além dessa intuição que comprimia seus corações no auge de uma aflição e de um medo inexplicáveis.Tiago, de repente, pára absorto, pálido e aterrorizado vendo algo na árvore, uma deformção.Pedro e Hugo perguntam mais assustados ainda o que havia acontecido, ao ver o esgar de assombro do colega.Tiago apenas apontou o dedo macilento para as raízes da árvore que ficavam expostas em formas dementes.Como se aquele emaranhado guardasse algo até as profundezas movediças daquela areia azíaga.Os outros dois garotos também viram e ficaram enjoados, aturdidos e enojados além do peculiar assombro.havia uma mão de dimensões abstratas, cadavérica que estava entre as raízes turvas ,como as aranhas em suas tocas à espreita...Era bestial e alucinógeno aquela mão deturpada , ante a anormalidade do contraste branco da mão e do negro da árvore.Bem como as formas da árvore e da mão, pois parecia uma aranha escondida esperando pelo sangue de sua vítima.Os batimentos cardíacos de medo de seus corações se perdiam e davam lugar aos pulsos eufóricos da árvore.Mas Tiago e Hugo imóveise mais cheios de sensações híbridas de medo, deixaram seus sapos fugirem.E seus corpos foram tomados de pequenos espasmos. Pareciam ter levado um suave choque em seus cérebros que os dopou de horror, pois aquela mão pálida e morta se mexia.Sobre o lamaçal os sapos bailavam estranhamente como se a árvore afetasse seua corações também. E sobre a lama eles não afundavam.Loucura.Tiago viu que não afundavam, correu em cima da lama em direção á árvore.Hugo abriu a boca para mandá-lo parar , mas para seu estremo espanto o amigo não afundou.Pedro pasmado correu atrás do amigo e não sabia o motivo dessa barbaridade.Hahahaha.E Hugo , por sua vez , seguiu Pedro.Mas Hugo tinha pouca fé e afundou sendo puxado por outra mão igualmente funesta à outra.Vagarosamente.E as sensações eram como orgasmos de desgraça.Apavorados, os outros dois garotos , se agarraram á árvore vendo as muitas outras mãos subindo pelo amigo num frenesi que a desgraça era digna de estrema piedade, pois estavam rasgando-o de dor.Eb ele gritava.Logo o corpo foi imerso pela lama e um borrão de sangue, que borvulhava, ficou malditop naquele lugar onde o corpo foi sugado.A mão na raiz!Se lembraram dela e não tinham para onde fugir.Se ouvia apenas as suas respirações e o bater do coração da árvore negra.Desesperados e calados por saber seus destinos.Gotas de sangue escorriam do alto da árvore banhando os meninos de um imensurável pavor.A mão que o hipnotizou ,naquele emaranhado, o puxou para as raízes.Apenas se ouviu o último sibilo selvagem de cólera, ele estava implorando pela vida quando deu aquele murmúrio.Enfim ficou preso na teia que é a mão e será devorado pela aranha que é a iníqua árvore.Mais um coração e uma alma para a árvore.Restou Pedro, híbrido de terror, com sua sorte e seu infortúnio.Pois sua vida foi poupada pela árvore, mas o tempo, implácavel, o matou.Em todo esse tempo ouvindo os pulsos negligentes da árvore que o assusava, o enlouquecia, mas não matava.Expirou e os urubus vieram e fizeram seu trabalho.Somente os urubus, seres do mal e violadores da morte, não ouviam os batimentos mesméricos do caração negro da árvore.A enfeitavam com mais demência aqueles galhos sinistros que pendiam malignos aos ventos dos céus abertos sob o lúgubre crepúsculo.

ZATOROTATH

Um conto fantástico de Lord Edu

Zatorotath, o necromante, agora tem os cinco espectros humanos para criar seu guardião.As almas do necrófilo, do assassino, do estuprador, do pedófilo e do político serão a base concreta para dar forma ao novo ser idealizado pelo necromante amante da magia negra. Zatorotath mandou os esqueletos malditos(que ele evocou da tumba para se encarregarem de capturar os cinco homens pervertidos), para a sepultura e começou o seu trabalho de maldição. Todos os cinco homens estavam dormindo sob o domínio mental do poderoso mago.Mas seus espíritos estavam perturbados com a influência persuasiva em seus corpos. O necromante colocou os homens sobre a Pedra do Sacrifício e tudo o que é normal estava horrendamente perturbado e agitado aos redores do feiticeiro Zatorotath.Um vento hediondo vindo do sul propagava uma névoa negra e densa de poeira;as nuvens se agrupavam demasiado rápido no céu espalhando um som metálico; e as criaturas inferiores se agrupavam para ver o espetáculo da criação nefanda. Zatorotath deu início à evocação esconjurando palavras primordiais de um povo que gozava de total bel-prazer, sem se preocupar com moralidade ou com a presença de um Criador oniciente, onipresente e onipotente. O mormaço se dissipou quando Zatorotath começou essa espécie de ritual.O tempo´pareceu parar, pois o vento cessou e a poeira permaneceu no mesmo lugar pendendo, como se não houvesse gravidade.As nuvens se mesclavam sonicamente nos céus, tomando algum tipo de forma titânica acima da Colina Cwruen. Assim como as criaturas inferiores, que com medo, fugiam da penumbra da perversidade. Um frio enregelante impregnou o lugar que pareceu estar habitado por destroços fantasmagóricos imprecando essas práticas execráveis. Esse ritual exigia que as palavras mágicas fossem ditas em um tom de ferocidade.Por isso a voz cavernosa e retumbante de Zatorotath pareciam trovões que ecoavam abomináveis. As nuvens, alaranjadas, estavam com a forma de uma espiral, se parecendo com uma linda galáxia cujo epicentro seria a Pedra do Sacrifício.Isso porque o centro da espiral era verticalmente na direção dos cinco homens sobre a pedra. Após recitar veementemente as palavras antigas( que terminavam com um "Shhhyyyahhh" enervante, tanto para Zatorotath quanto para todo o sistema natural), um raio caiu do epicentro das nuvens e caiu nos corpos , que tentavam lutar para fugir dessa repulsiva mutação. Ao atingir os cinco homens dissolutos impuros, o raio violeta tomou uma diversidade de cores fluorescentes que irradiavam uma imensidade de sensações abstratas que enfraquecem o Universo. Os corpos se contorciam se juntando.Ossos, carnes, sangue e imoralidade.Entre aquelas cores tambem se via as almas se mesclando em movimentos caóticos e blasfemos completando essa malevol}encia herética. O raiko parou de cair e já podia-se ver que não haviam mais cinco corpos sobre a Pedra, mas apenas um , envolto numa fumaça densa de um odor acre e profano que ia sumindo aos poucos revelando um novo Ser.

quinta-feira, novembro 09, 2006

ANNABEL LEE por Edgar Allan Poe



Foi há muitos e muitos anos já,
Num reino de ao pé do mar.
Como sabeis todos, vivia lá
Aquela que eu soube amar;
E vivia sem outro pensamento
Que amar-me e eu a adorar.

Eu era criança e ela era criança,
Neste reino ao pé do mar;
Mas o nosso amor era mais que amor-
O meu e o dela a amar;
Um amor que os anjos do céu vierama ambos nós invejar.

E foi esta a razão por que, há muitos anos,
Neste reino ao pé do mar,
Um vento saiu duma nuvem, gelando
A linda que eu soube amar;
E o seu parente fidalgo veio
De longe a me a tirar,
Para a fechar num sepulcro
Neste reino ao pé do mar.

E os anjos, menos felizes no céu,
Ainda a nos invejar...
Sim, foi essa a razão (como sabem todos,
Neste reino ao pé do mar)
Que o vento saiu da nuvem de noite
Gelando e matando a que eu soube amar.

Mas o nosso amor era mais que o amor
De muitos mais velhos a amar,
De muitos de mais meditar,
E nem os anjos do céu lá em cima,
Nem demônios debaixo do mar
Poderão separar a minha alma da alma
Da linda que eu soube amar.

Porque os luares tristonhos só me trazem sonhos
Da linda que eu soube amar;
E as estrelas nos ares só me lembram olhares
Da linda que eu soube amar;
E assim 'stou deitado toda a noite ao lado
Do meu anjo, meu anjo, meu sonho e meu fado,
No sepulcro ao pé do mar,
Ao pé do murmúrio do mar.

segunda-feira, novembro 06, 2006

LEONOR


De Edgar Allan Poe

Sou oriundo duma raça caracterizada pelo vigor da fantasia e pelo ardor da paixão.
Os homens chamaram-me louco; mas ainda não está resolvido o problema - se a loucura é ou não a suprema inteligência - se muito do que é glorioso - se tudo o que é profundo - não tem a sua origem numa doença do pensamento - em modalidades do espírito exaltadas a custa das faculdades gerais. Aqueles que sonham de dia sabem muitas coisas que escapam àqueles que somente de noite sonham. Nas suas vagas visões obtêm relances de eternidade e, quando despertam, estremecem ao verem que estiveram mesmo à beira do grande segredo. Penetram sem leme nem bússola, no vasto oceano da "luz inefável"; e de novo, como os aventureiros do geógrafo núbio, agressi sunt mare tenebrarum, quid in eo esset exploraturi.
Diremos, então, que estou doido. Concordo, pelo menos, em que há dois estados distintos da minha existência mental - o de uma razão lúcida que não pode ser contestada, e pertence à memória de acontecimentos que constituem a primeira época da minha vida - e um estado de sombra e dúvida, que abrange o presente e a recordação do que constitui a segunda grande era do meu ser. Por conseqüência, acreditai tudo o que eu disser do primeiro período de minha existência; e dai ao que eu vier a contar dos derradeiros tempos o crédito que se vos afigurar justo; ou ponde-o completamente em dúvida; ou, se não puderes duvidar, fazei como Édipo e procurai decifrar o seu enigma.
Aquela que na minha mocidade amei, e de quem agora, serena e lucidamente, estou traçando estas recordações, era a filha única da única irmã de minha mãe havia muito falecida.
Minha prima chamava-se Leonor. Havíamos sempre vivido juntos, sob um sol tropical, no vale de Many-Coloured Crass. Jamais viandante algum aventurou seus passos por aquele vale; pois se estendia por entre uma cadeia de montes gigantescos, que sobre ele debruçavam as suas escarpas, vedando o acesso dos raios solares aos seus mais aprazíveis recônditos. Nas suas proximidades atalho algum jamais fora trilhado, e, para chegarmos ao nosso lar, não precisávamos afastar, com força, a folhagem de milhares de árvores, nem esmagar milhões de fragrantes flores. Assim vivíamos nós sozinhos, nada sabendo do mundo para além do vale - eu, minha prima e sua mãe.
Das obscuras regiões de além dos montes, no extremo superior de nossos domínios, descia um estreito e profundo rio, que excedia em brilho e limpidez tudo menos os claros olhos de Leonor; e, serpenteando furtivamente em intrincados meandros, embrenhava-se por fim através de uma sombria garganta, por entre montes ainda mais negros do que aqueles de que brotara. Denominávamo-lo o "Rio do Silêncio", pois as suas águas pareciam ter a faculdade de tudo emudecer. Do seu leito nenhum murmúrio se erguia, e tão de mansinho ia desfiando seu curso que os diáfanos seixinhos que esmaltavam o fundo e que nós tanto gostávamos de contemplar, permaneciam absolutamente imóveis, refulgindo eternamente no lugar onde um dia se quedaram.
A margem do rio e de muitos cintilantes riachos que, por tortuosos rodeios, a ele afluíam, bem como os espaços que as margens desciam até o leito de seixos do fundo das águas - todos estes lugares, não menos de que toda a superfície do vale, desde o rio até as montanhas que o circundavam, eram tapetados por uma relva verde, macia, espessa, curta, perfeitamente lisa e perfumada, mas tão profusamente matizada com botões de ouro, margaridas, violetas e asfódelos que a sua extraordinária beleza dilatava nossos corações com eloquência e paixão, do amor e da glória de Deus.
E, aqui e além, em maciços que se diriam antes matas de sonhos, brotavam fantásticas árvores, cujos altos e esguios troncos se não erguiam a prumo, mas, torcendo-se, inclinavam-se para a luz que ao meio-dia irrompia pelo centro do vale. A sua casca apresentava ao mesmo tempo o esplendor do marfim e da prata, e seria mais suave do que tudo não fosse a suave face de Leonor; de sorte que, se não fora o verde brilhante das enormes folhas que das suas copas se alastravam em linhas compridas e trêmulas, embaladas pelos zéfiros, poderia alguém imaginá-las gigantescas serpentes da Síria, prestando homenagem ao seu soberano, o Sol.
De mãos dadas, durante 15 anos, vaguei com Leonor por este vale, antes de o Amor penetrar em nossos corações. Era uma tarde, ao cerrar-se o terceiro lustro da sua vida e o quarto da minha: estávamos sentados, abraçados, debaixo das árvores-serpentes e contemplávamos as nossas imagens refletidas no espelho das águas do rio. Nem mais uma palavra pronunciamos durante o resto daquele doce dia, e na manhã seguinte ainda as nossas palavras eram trêmulas e raras. Do fundo das águas havíamos tirado o deus Eros, e agora sentíamos que havíamos ateado dentro de nós as almas ardorosas dos nossos maiores. As paixões que durante séculos haviam caracterizado a nossa raça acudiam agora de tropel com as fantasias que os haviam igualmente distinguido e bafejavam venturas e bênçãos sobre o vale de Many-Coloured Crass. Tudo como por encanto mudou. Sobre as árvores onde jamais se conhecera uma flor desabrocharam agora estranhas flores em forma de estrela. Tornaram-se mais carregados os tons das alfombras de verdura; e quando uma a uma murcharam as brancas margaridas, surgiram em seus lugares, dez a dez, os asfóidelos da cor dos rubis. E a vida brotava em nossos atalhos; pois o alto flamingo, até aqui nunca visto, com todas as álacres e variegadas aves, ostentava ante nós a sua plumagem escarlate. Peixes de ouro e de prata acorriam agora ao rio, de cujo seio se erguia, de mansinho, um murmúrio que, por fim, foi engrossando até se transformar numa suave melodia mais divina de que a da harpa de Éolo, mais doce do que tudo, não fosse a voz de Leonor. E agora, também uma enorme nuvem, que por muito tempo dominara as regiões do Hesper, avançara num deslumbramento carmesim e ouro e viera pairar serenamente sobre nós, descendo dia a dia até pousar sobre os cumes dos montes, transfigurando-os com o seu glorioso esplendor e encerrando-nos, como que para sempre, dentro duma mágica prisão de magnificência e glória.
O encanto de Leonor era o de um Serafim, mas ela era uma adolescente ingênua e simples como a curta vida que vivera entre as flores. Nenhum artifício mascarava o amor que lhe estuava no coração, e ela examinava comigo os seus mais íntimos recessos, quando passeávamos no vale de Many-Coloured e conversávamos sobre as notáveis transformações que nele ultimamente se haviam operado.
Um dia, finalmente, tendo falado, banhada em pranto da triste e derradeira transformação que a Humanidade deve sofrer, nunca mais deixou de discutir este doloroso assunto, intercalando-o em todas as nossas conversas, como nos cantos do bardo de Schiraz estão constantemente ocorrendo as mesmas imagens, a cada passo repetidas em cada impressionante variação de frase.
Ela tinha visto que o dedo da morte se lhe cravara no seio - que, como o efêmero, ela fora feita perfeita em encanto e beleza somente para morrer; mas para ela os terrores do túmulo apenas consistiam numa apreensão, que uma tarde, ao crepúsculo, ela me revelou, passeando comigo pelas margens do Rio do Silêncio. O que a penalizava era pensar que, após havê-la sepultado no vale de Many-Coloured, eu abandonaria para sempre aquelas ditosas paragens, transferindo o amor, que só dela tão apaixonadamente agora era, para alguma jovem do mundo exterior e banal. E, então, ao ouvir-lhe expressar este pesar, atirei-me aos pés de Leonor e jurei que nunca me ligaria pelo casamento a filha alguma da Terra - que jamais eu, fosse de que maneira fosse, trairia a sua querida recordação. Invoquei o Onipotente Senhor como testemunha da pia solenidade do meu juramento. E a maldição de que Deus e dela impetrei, no caso de eu atraiçoar meu juramento, envolvia uma pena cujo extraordinário horror me não permite referi-la aqui.
Os olhos de Leonor se tornaram mais claros, quando eu assim exprimi o carinho que a prendia à minha vida; como se do peito arrancassem um peso mortal; tremeu e chorou amargamente; mas (que era ela senão uma criança?) aceitou o juramento, que lhe tornava mais suave o leito de morte. E disse-me, não muitos dias depois, finando-se tranqüilamente, que, em vista do que eu fizera para alívio e consolo do seu espírito, velaria sempre por mim depois de morta, e se tal lhe fosse permitido, voltaria visivelmente a visitar-me nas vigílias da noite; se, porém, isto ultrapassasse o que às almas no Paraíso é permitido, dar-me-ia, pelo menos, freqüentes indicações de sua presença, suspirando sobre mim nos ventos da tarde ou enchendo o ar que eu respirasse com o perfume dos turíbulos dos anjos. E, com estas palavras, exalou a sua inocente vida, ponto termo à primeira época da minha.
Até aqui é fiel o relato que fiz. Mas, quando transponho a barreira formada pela morte de minha amada e penetro na segunda era da minha existência, sinto uma sombra empolgar-me o cérebro e não confio na perfeita sanidade das minhas palavras. Mas, prossigamos.
Os anos foram-se arrastando pesadamente e eu continuei habitando no vale - mas uma segunda transformação se operara em todas as coisas. As flores em forma de estrela secaram nas árvores e não mais reapareceram. Apagaram-se os matizes do verde tapete de relva; e, um a um, murcharam os rubros asfódelos e, em seu lugar, surgiram, dez a dez, escuras violetas sempre carregadas de orvalho.
A vida desapareceu dos nossos atalhos; o alto flamingo já não exibia ante nós a sua plumagem escarlate, mas tristemente fugiu do vale para os montes com todas as álacres aves multicores que em sua companhia tinham vindo. Os peixes de ouro e prata nunca mais esmaltaram o nosso doce rio. A suave melodia que encantara mais do que a harpa e Éolo e fora mais divina do que tudo menos a voz de Leonor, foi-se pouco a pouco extinguindo, sumindo-se em murmúrios cada vez mais débeis, até que, por fim, o rio voltou à solenidade do seu primitivo silêncio. E então ergueu-se de novo a enorme nuvem e, abandonando os píncaros dos montes à sua antiga tristeza, recuou para as regiões de Hesper, e consigo levou o áureo esplendor e todas as magnificências que por alguns anos transfiguraram o vale de Many-Coloured Crass.
Todavia, as promessas de Leonor não ficaram no olvido; pois eu ouvia os sons do balouçar dos turíbulos dos anjos; correntes dum sagrado perfume flutuavam permanentemente sobre o vale; nas horas ermas, quando meu coração palpitava pesadamente, os ventos que me refrescavam a fronte vinham carregados de brandos suspiros; indistintos murmúrios - oh, mas só uma vez! fui desperto de um sono, que se me afigurava o sono da morte, pela pressão de uns lábios espirituais sobre os meus.
Mas o vácuo dentro do meu coração recusava-se, ainda assim, a ser preenchido. Tinha saudades do amor que o enchera a transbordar. Por fim o vale fazia-me sofrer pelas recordações, e abandonei-o então para sempre, trocando-o pelas vaidades e pelos turbulentos triunfos do mundo.
Encontrei-me dentro duma estranha cidade, onde todas as coisas podiam ter servido para me apagaram da lembrança os doces sonhos que por tanto tempo sonhara no vale. O luxo e a pompa de uma corte majestosa, o doido clangor das armas e a radiosa beleza das mulheres desvairaram-me e embriagaram-me o cérebro. Até aqui, porém, ainda a minha alma permanecera fiel aos seus juramentos, e nas horas silentes da noite ainda até mim chegavam as revelações da presença de Leonor.
De súbito, cessaram estas manifestações; mundo escureceu de todo ante os meus olhos, e quedei-me espavorido ante o escaldante pensamento que me possuía - ante as terríveis tentações que me empolgavam; pois de muito longe, de uma terra distante e ignota, viera para a alegre corte do rei que eu servia, uma donzela a cuja beleza todo o meu perjuro coração imediatamente se rendeu - a cujos pés me curvei sem uma luta, no mais ardente, no mais abjeto culto de amor.
Que era, na verdade, a minha paixão pela adolescente do vale comparada com o fervor e o delírio, o alucinado êxtase de adoração com que eu depunha toda a minha alma em pranto aos pés da etérea Hermengarda? - Oh, que deslumbrante era a angélica Hermengarda! E na minha alma para ninguém mais havia lugar. - Oh, que divina era a celestial Hermengarda! E quando eu sondava as profundezas dos olhos inolvidáveis, só neles pensava - só neles e nela!
Casei; não me arreceei da maldição que invocara; nem senti o amargor de haver infringido um juramento solene.
Mas uma vez, no silêncio da noite, chegaram até mim, através das minhas persianas, os brandos suspiros que havia muito eu já não ouvia e, numa voz familiar e doce, percebi estas palavras que jamais esquecerei:
- Dorme em paz! - pois o Espírito do Amor reina e governa e, acolhendo no teu apaixonado coração aquela que se chama Hermengarda, tu és absolvido, por motivos que só no céu serão explicados, dos juramentos que fizeste a Leonor!
- Fim -

Encontro em Samarra

Um criado topou com a morte, uma velha encarquilhada de vestido preto, na praça do mercado, e viu-a fazer o que lhe pareceu um gesto de ameaça. Aterrado, o criado toma emprestado o cavalo do amo e foge para Samarra. Na mesma tarde, topando com a velha na praça do mercado, o amo pergunta-lhe: " Por que fez um gesto de ameaça para meu criado hoje cedo?" E a morte replica: " Não foi um gesto de ameaça: foi apenas um movimento de surpresa. Fiquei espantada ao ver seu criando em Bagdá, visto que tinha um encontro com ele hoje a noite em Samarra."

De Somerset Maugham

sábado, novembro 04, 2006

A NOITE EM QUE VIESTE por: Henry Evaristo



A noite em que vieste estava fria como nunca antes. Meus olhos marejados te avistaram através da janela caminhando na direção da casa em meio à neve e às trevas como se combalido e furioso; mas nunca perdido, visto que bem sabias onde tinhas chegado. De pronto te abri minha porta e não te fiz perguntas desnecessárias fingindo espanto em ver-te. Ambos sabíamos que fora eu aquele que te trouxera ali e nossas palavras eram, então, articulações infrutíferas. Deixei-te a vontade para olhar por todos os cantos de minha humilde moradia e não te interrompi nem um minuto sequer; nem mesmo quando, incontinenti, invadiste minha alcova onde descansava o corpo de minha esposa. Como me ordenastes em sonhos, sacrifiquei-a em teu nome para que ela, ao partir deste mundo pelas minhas mãos, pudesse contribuir com sua paixão para a minha glória final.

Acompanhei-te depois ao porão onde encontraste os símbolos mágicos necessários para a tua invocação, aqueles que tu mesmo bem ensinastes aos magos na idade das trevas. Usei-os com a maestria resultante de vinte anos de estudos árduos movidos pela curiosidade, mas, sobretudo, pela necessidade de abandonar este mundo pequeno e atingir outras esferas; pela chama que ardia em meu peito e que dizia "Tens que ser um homem rico e com poderes sobre as vontades alheias!". Vi o brilho louco em teus olhos quanto constataste que tudo estava certo e que podias terminar o que eu começara.

Como a borda negra de um abismo insondável, mestre, tu te voltaste para mim e teus olhos em chamas encheram meu corpo de esperanças. Lança-me, oh, homem negro, nas profundezas de teu abraço inflamado que eu mergulharei nos caminhos da tua maldade infinita e da tua liberdade absoluta que é pecaminosa aos olhos dos homens, mas benfazeja aos meus. Me investe da palavra de teu reino para a tua glória! Toma agora minha alma e me dá o mundo!

sexta-feira, novembro 03, 2006

SUDÁRIO


Por von Sorian, o Velho








SUDÁRIO

Para Rita Von Engels

Uma noite desce sobre a minha sorte.
Abate-me uma estrela sem fortuna.
Singra-me os mares assombrada escuna.
Sangra-me a Lua de um profundo corte.

Livor da Lua no meu contraforte:
sangue noturno que o Sudário enfuna;
vela agourenta desfazendo a espuma
num torvelinho de escuridão e morte.

Pesa-me uma sombra bem quase à asfixia,
pois que minha alma é mortalha fria
que entenebrece meu corpo medonho.

Que venha então esperada ruptura:
corpo e alma a romper tênue sutura...
Assim como alguém que acorda dum sonho.

terça-feira, outubro 31, 2006

A SOLIDÃO


Por Charles Baudelaire
(Tradução de Aurélio Buarque de Holanda )

Diz-me um jornalista filantropo que a solidão é má
Para o homem; e, em abono de sua tese, cita, como todos
Os incrédulos, palavras dos Padres da Igreja.
Eu sei que o Demônio é dado a freqüentar os sítios
Áridos, e que o espírito do homicídio e da lubricidade seInflama prodigiosamente nos ermos.
Mas talvez esta solidão
Só fôsse um perigo para a alma ociosa e divagadora que a
Povoa de suas paixões e de suas quimeras.
Certo é que um tagarela, cujo supremo prazer consiste
Em falar do alto de uma cátedra ou de uma tribuna, se
Arriscaria muito a tornar-se louco furioso na ilha de Robinson.
Não exijo do meu jornalista as corajosas virtudes
De Crusoe, mas peço-lhe que não incrimine os amantes da
Solidão e do mistério.Há em nossas raças palradoras indivíduos que aceitariam
Com menor repugnância o suplício máximo, se lhes fôsse
Permitido fazer do alto do cadafalso uma copiosa arenga,
Sem temer que os tambores de Santerre lhes cortassem
Intempestivamente a palavra.
Não os lastimo, porque adivinho que as suas efusões
Oratórias lhes proporcionam volúpias iguais àquelas que
Outros encontram no silêncio e no recolhimento; porém os
Desprezo.Desejo, antes de tudo, que o maldito jornalista me deixe
Divertir-me a meu gôsto.-Então o senhor não sente nunca - perguntou-me,
Com um tom nasal muito apostólico - a necessidade de
Compartir os seus prazeres?Vejam lá o sutil invejoso! Êle sabe que eu desdenho os
Seus, e vem insinuar-se nos meus, o horrível desmancha-prazeres!"A grande desgraça de não poder estar só!..."- diz algures La Bruyère, como para envergonhar os que
Procuram esquecer-se na multidão, temendo, sem dúvida, não se
Poderem suportar a si mesmos."Quase tôdas as nossas desgraças nos advêm de não
Têrmos sabido ficar em nosso quarto" - diz outro sábio,
Creio que Pascal, lembrando assim, na célula do recolhimento,
Todos os insensatos que buscam a felicidade no
Movimento e numa prostituição a que eu poderia chamar
Fraternitária, se quisesse falar a bela língua do meu século.

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segunda-feira, outubro 30, 2006

O CORVO


Uma brilhante tradução do poema de Poe, O CORVO, clique aqui

domingo, outubro 29, 2006

CONTRIBUA

GOSTOU DO BLOG. ENTÃO MANDE SEU CONTO, POESIA OU OUTRO TEXTO PARA NÓS; irmandadedassombras@yahoo.com.br. TEREMOS MUITO PRAZER EM TE-LO CONOSCO

SALVE A I.S.

A Lenda da Louca Estéril


Essa é mais uma daquelas lendas dos povos interioranos. Um mito passado de geração em geração, contando a luz de fogueiras pelos mais velhos a seus filhos e netos.Ela reza que antigamente, numa vila isolada de tudo e todos, existia uma mulher, muito linda e prendada, que prometida a um homem simples e trabalhador, casou-se nova com um sonho de ter com ele uma linda família.Apesar de no começo não o ama-lo, logo devota de criação e de caráter, começou a lhe dedicar um carinho especial, algo que ela podia até chamar de amor. Afinal era casada com um homem digno, respeitado por todos, trabalhador e muito amoroso com ela Os anos se passaram e seu sonho foi ficando cada vez mais distante. O lindo casamento começou a ficar vulnerável. Por mais que eles tentassem ela não conseguia engravidar. Seu marido, homem de honra, não podia aceitar que sua mulher não gerasse um filho dele. Não agüentava mais os olhares nas ruas, os comentários em voz baixa, as risadinhas discretas .As brigas começaram a surgir e seu marido cada dia mais violento, vitima agora da bebida e do ópio. Por muitas vezes a deixou roxa, sangrando , estendida no chão, e não era raro a molestar depois de tudo.Mas no seu coração, bem no fundo, o sonho de uma família feliz ainda permanecia, aquele sonho ainda vivia forte em seu interior. Sabia que tudo aquilo era apenas pela falta de um filho, sabia que se ela pudesse dar um filho ao seu amado, o tão sonhado filho que eles tanto tentaram ter e que agora era motivo de discórdia entre eles.Em uma de suas raras saídas pelas ruas, passou por entre os amontoados de pobres coitados, marginais, esguios da sociedade. Mas agora eles não eram mais uma ameaça, nem sequer tinha medo de se esgueirar por aqueles guetos sujos, pois ali ninguém lhe olharia piedosamente, ninguém comentaria seus olhos roxos e nem o ferimento de sua boca, ali ela era só mais uma pobre infeliz.Mas seus passos foram diminuindo, parando seus pés um do lado do outro, ficando de frente a uma pobre mulher segurando uma menina. A garota devia ter seus cinco anos, usava uns farrapos, mas mesmo assim lhe chamou muita a atenção, principalmente seus olhos, azuis claros como o céu. Ficou ali vendo aquela menina um longo tempo até ver a senhora olhando a ele o que fez ela correr daliOs dias passaram, mas aquela menina não saia de sua cabeça. Aquela cena, aquela menina jogada naquela imundice, aquela menina tão linda, tão perfeita, podia ser até sua filha.Os dias continuaram a passar e ela agora ia quase todos os dias ver a pequena menina nos guetos imundos. Ficava ali por horas as vezes, indo e voltando, vendo de longe a menina e cada vez era mais forte a idéia de que ali estava sua filha, a filha que Deus nunca tinha lhe posto no frente, mas que agora ela a havia encontrado.As surras continuaram e as humilhações se tornaram mais freqüentes. Ela tinha que salvar seu casamento, tinha que realizar seu sonho.Numa noite em que seu marido não voltou a casa, ela tomou em suas mãos uma faca e a colocou em um dos panos de seu vestido, pôs seu véu e antes de sair pegou uma das lamparinas e a acendeu seguindo até o gueto onde iria encontrar sua filha perdida.Foram cerca de oito golpes até conseguir tirar a vida da jovem, golpes cuidadosos afim de manter a pobre menina livre de tal cena, golpes que ela deu com uma força e destreza que nem ela sabia que possuía. Recolheu então a criança e fugiu dali o mais rápido que podia. Suas pernas tremiam agora que dera conta do que havia feito, mas tudo havia sido por uma boa causa, pois agora ela tinha uma filha, a filha que ela sempre sonhou, a filha que faltava na vida dela e de seu maridoAo chegar em casa, ainda um pouco tonto por causa do vinho, viu no sofá sua mulher toda suja de sangue e uma menina que dormia ao seu lado em um sono profundo. Um desespero tomou conta dele, enquanto ela lhe dizia que agora tudo seria diferente, pois ali estava a filha que tanto sonharam. Ele desesperado correu da casa, deixando sua esposa parada em frente a porta em prantos.Mas as coisas não duraram por muito tempo, e naquela noite mesmo já se sabia da barbaria que a jovem havia praticado, pois seu marido em desespero saiu gritando pelas ruas que sua esposa era uma assassina e junto com algumas pessoas que viram a jovem sair do gueto com a criança. As tochas foram acesas e o amontoado de aldeões enfurecidos se dirigiam a casa onde estaria a jovem assassina.Os aldeões enfurecidos arrombaram a porta e lincharam a mulher. Enquanto agonizava ela olhou nos olhos do marido e disse que voltaria com a filha que ele tanto desejou e eles seriam enfim uma família feliz.Desde então o marido se pôs a peregrinar afim de fugir do espírito de sua mulher que lhe perseguia onde ia, até morrer de sede no meio de um deserto em meio a uma visão de sua mulherMuitos dizem que ela ainda busca a sua filha e que em noites sem lua ela corre as regiões próximas em busca de uma criança de olhos azuis, de cinco anos, para que seu espírito consiga enfim a paz...

LINX


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sexta-feira, outubro 27, 2006

OS GATOS DE ULTHAR


Do imortal H. P. Lovecraft

Dizem que em Ulthar, lá atrás do rio Sakai, ninguém jamais mata um gato; e ao olhar para aquele que ronrona perto do fogo aceso na lareira, sei que é verdade. Pois o gato é enigma chegado às coisas que o homem não consegue ver. Ele é a alma do Egito antigo, conhecedor de histórias das cidades esquecidas de Meroe e Ophir. É sangue do sangue dos senhores das selvas, herdeiro dos segredos da África venerável e sinistra. Primo da Esfinge, fala a sua lingua e, ainda mais antigo, se lembra de coisas que a Esfinge já esqueceu.
Em Ulthar, antes que o prefeito proibisse o assassinato de gatos, havia uma chácara onde um velho e sua esposa se divertiam roubando e matando os gatos de seus vizinhos. Por que faziam isso não se sabe; há quem odeie a voz dos gatos na noite e as tome como mau agouro; e ache mesmo que os gatos deveriam correr imperceptíveis pelos jardins e quintais 'a luz mortiça da madrugada.
Seja por que for, esse velho e sua mulher gostavam de prender e matar qualquer gato que chegasse perto de sua casa: e pelos gritos que se ouviam depois que escurecia a gente da vila imaginava que a maneira de assassinar os gatos era perversamente insólita. Mas os camponeses não falavam disso com o casal de velhos, seja por que a expressão habitual de seus rostos era má ou por que sua chácara era pequena, escura e arruinada demais, escondida entre carvalhos gigantes.
Na verdade os donos dos gatos odiavam o casal estranho mas os temiam ainda mais. E em vez de castigá-los como assassinos brutais que eram, tratavam de vigiar para que nenhum bichano querido ou valente caçador de camundongos chegasse perto do bosque sombrio.
Quando sumia um gato por algum descuido e se ouviam os sons depois que chegava a escuridão, seu dono se lamentava impotente ou se consolava agradecendo 'a Sorte por não ter perdido uma de suas crianças. Pois as pessoas de Ulthar eram simplórias e não conheciam a origem dos primeiros gatos.
Um dia, vindos do Sul, viajantes estranhos chegaram em caravana, a percorrer as ruas estreitas de Ulthar. Era gente morena e escura, diferente dos outros que costumavam atravessar a cidade duas vezes por ano. Acamparam na Praça do Mercado e compravam contas coloridas dos mercadores e liam a sorte dos passantes por dinheiro. Faziam rituais estranhos e ninguém sabia dizer de onde vinham e suas carroças eram pintadas com figuras de corpos humanos com cabeças de gatos, gaviões, carneiros e leões. O chefe da caravana usava um capacete com dois chifres e círculos de metal com inscrições.
E nessa caravana singular vinha um garoto pequeno que, sem ter pai nem mãe, tinha só um gatinho preto como companheiro. A peste havia castigado sua vida, mas deixara com ele aquela coisinha peluda para diminuir sua tristeza; e quando alguém é muito jovem pode achar que as vivas brincadeiras de um gatinho preto são tudo o que se precisa. E esse menino de pele escura, chamado de Menes por seu povo, ria muito mais do que chorava, a se distrair com as brincadeiras cheias de graça de seu bichano, sentado nos degraus de sua carroça pintada tão esquisito.
Na terceira manhã da chegada da caravana a Ulthar o gatinho de Menes sumiu. E enquanto o garoto chorava alto na Praça do Mercado alguém da cidade contou a ele do casal de velhos e dos sons que se ouviam 'a noite. E quando Menes ouviu essas histórias parou de chorar, ficou pensativo, depois rezou.
Estendeu os braços para o alto, em direção ao Sol, e rezou em uma lingua que o povo de Ulthar desconhecia; e para dizer a verdade os camponeses nem tentaram entender o que Menes falava, por que aconteciam coisas no céu e as nuvens tomavam formas incomuns.
Era estranho. Menes rezava e sobre suas cabeças formavam-se nebulosas figuras exóticas de criaturas híbridas, vestindo capacetes com chifres e discos de metal. A Natureza cria tais ilusões que impressionam as pessoas imaginativas. Naquela noite a caravana deixou Ulthar e nunca mais voltou.
E então os camponeses perceberam que em toda a cidade não havia um só gato. Todos os bichanos de todas as casas desapareceram: gatos grandes e pequenos, pretos, cinzentos, rajados, brancos, amarelos... O burgomestre Kranos jurou que o povo moreno levara embora os gatos como vingança pela morte do gatinho preto de Menes e praguejava contra a caravana e o menino. Mas Nith, o tabelião esquelético, dizia que o velho casal do bosque era suspeito, já que seu ódio aos gatos era conhecido e cada vez mais ameaçador.
Ainda assim ninguém teve coragem de se queixar ao casal sinistro. Até mesmo quando Atal, o filho do estalajadeiro, jurou ter visto todos os gatos de Ulthar no bosque maldito ao por do sol, caminhando aos pares, solenes e vagarosos, num ritual jamais conhecido, formando um círculo em volta da cabana. O povo da cidade não sabia se acreditava no garoto; e mesmo achando que os velhos da chácara encantaram os gatos da cidade para depois matá-los, se acovardaram e preferiram deixar para falar com os dois quando viessem 'a cidade.
E assim Ulthar foi dormir em ódio e covardia. E quando o povo acordou de manhã, surpresa! cada gato voltara 'a sua casa: grandes e pequenos, pretos, cinzentos, rajados, amarelos e brancos, não faltava nenhum. Ronronavam alto, felizes, gordos, luzidios. O povo maravilhado só falava nisso. Kranon insistia: o povo moreno levara os gatos, já que nenhum bichano jamais voltara vivo da casa no bosque. E todos concordavam: era curiosa a recusa dos gatos em comer, por dois dias inteiros deixaram seus pratinhos de carne e pires de leite intactos, dormindo preguiçosos ao sol ou perto das lareiras acesas.
Passou uma semana antes que o povo da vila notasse que as luzes da chácara dos velhos não acendiam mais 'a noite. E então Nith se deu conta de que os velhos não apareciam na cidade desde o dia em que os gatos sumiram. Na outra semana o burgomestre superou o medo e decidiu averiguar o acontecido. Para testemunhas chamou Shang, o ferreiro e Thul, o açougueiro. E eles arrombaram a porta da chácara e foi só isso que acharam: dois esqueletos humanos no meio do chão de terra, limpos de todo vestígio de carne ou pele, e uma quantidade de besouros estranhos a se arrastar pelos cantos da sala.
Muito se falou em Ulthar. Zath, o médico legista, Nith, o tabelião e Kranon e Shang e Thul eram assediados com perguntas. Até mesmo o pequeno Atal, filho do estalajadeiro, foi interrogado minuciosamente e recompensado com doces. Falava-se do velho posseiro e sua mulher na chácara, da caravana do povo moreno, do pequeno Menes e seu gatinho preto, da reza de Menes e da transformação do céu durante a reza, do que os gatos fizeram depois que a caravana partiu e do que foi achado na casa sombria no bosque.
E por fim o burgomestre decretou por lei o que foi depois contado por mercadores em Hatheg e discutido por viajantes em Nir: que na cidade de Ulthar ninguém jamais pode matar um gato.
(tradução de Leila Galvão)
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A MÁSCARA DA MORTE RUBRA


Do imortal Edgar Allan Poe

DURANTE muito tempo devastara a "Morte Rubra" aquele país. Jamais se vira peste tão
fatal e tão terrível. O sangue era a sua encarnação e o seu sinete: a vermelhidão e o
horror do sangue. Aparecia com agudas dores e súbitas vertigens, seguindo-se profusa
sangueira pelos poros e a decomposição. Manchas escarlates no corpo e sobretudo no
rosto da vítima eram o anátema da peste, que a privava do auxílio e da simpatia de seus
semelhantes. E toda a erupção progresso e término da doença não duravam mais de meia
hora.

Mas o Príncipe Próspero era feliz, destemido e sagaz. Quando seus domínios se viram
despovoados da metade de seus habitantes mandou chamar à sua presença um milheiro
de amigos sadios e joviais dentre os cavalheiros e damas de sua corte, retirando-se com
eles, em total reclusão, para uma de suas abadias fortificadas. Era um edifício vasto e
magnífico, criação de príncipes de gosto excêntrico, embora majestoso. Cercava-o forte e
elevada muralha com portas de ferro. Logo que entraram, os cortesãos trouxeram fornos e
pesados martelos para rebitar os ferrolhos. Tinham resolvido não proporcionar meios de
entrada ou saída aos súbitos impulsos de desespero dos de fora ou ao frenesi dos de
dentro.

A abadia estava fartamente provida. Com tais precauções, podiam os cortesãos desafiar o
contágio. Que o mundo exterior se arranjasse por si. Enquanto isso, de nada valia nele
pensar, ou afligir por sua causa. Providenciara o príncipe para que não faltassem
diversões. Havia jograis, improvisadores, bailarinos. músicos. Havia beleza e havia vinho.
Lá dentro, tudo isso e segurança. Lá fora a "Morte Rubra".Foi quase ao término do quinto
ou sexto mês de sua reclusão enquanto a peste raivava mais furiosamente lá fora, que o
Príncipe Próspero ofereceu a seus mil amigos um baile de máscaras da mais
extraordinária magnificência.

Que voluptuosa cena a daquela mascarada! Mas antes descrevamos os salões em que ela
se desenrolava. Era uma série imperial de sete salões. Em muitos palácios, contudo, tais
sucessões de salas formavam uma longa e reta perspectiva quando as portas se abrem de
par em par não havendo quase obstáculo à perfeita visão de todo o conjunto . Aqui, o
caso era bastante diverso, coisa aliás de esperar do amor do duque pelo fantástico. Os
aposentos estavam tão irregularmente dispostos que a visão abrangia pouco mais de um
de cada vez. De vinte ou de trinta em trinta jardas havia uma curva aguda e, a cada
curva, uma nova impressão.A direita e à esquerda, no meio de cada parede, uma enorme
e estreita janela gótica abria-se para um corredor fechado que acompanhava as voltas do
conjunto. Essas janelas eram providas de vitrais, variava de acordo com o tom dominante
das decorações do aposento para onde se abriam. O da extremidade oriental, por exemplo
era azul, e de azul vivo eram suas janelas. O segundo tinha ornamentos e tapeçarias
purpúreos, e purpúreas eram as vidraças. O terceiro era todo verde, e verdes eram
também as esquadrias das janelas. O quarto estava mobiliado e iluminado com
laranjada. O quinto era branco, e o sexto, roxo. O sétimo o estava totalmente coberto de
tapeçarias de veludo preto, que pendiam do teto e pelas paredes, caindo em pesadas
dobras um tapete do mesmo material e da mesma cor. Mas somente nesta sala a cor das
janelas não correspondia à das decorações. As vidraças ali, eram escarlates, da cor de
sangue vivo.

Ora, em nenhum daqueles sete salões havia qualquer lâmpada ou candelabro em meio à
profusão de ornamentos dourados que se espalhavam por todos os cantos ou pendiam do
forro. Luz de espécie alguma emanava de lâmpada ou vela, dentro da série de salas. Mas,
nos corredores que acompanhavam a perspectiva, erguia-se em frente de cada janela,
uma pesada trípode com um braseiro que projetava seus raios pelos vitrais coloridos e
assim iluminava deslumbrantemente a sala, produzindo numerosos aspectos vistosos e
fantásticos. Na sala negra, porém, o efeito do clarão dava sobre as negras cortinas,
através das vidraças tintas de .sangue, era extremamente lívido e dava uma aparência tão
estranha às fisionomias dos que entravam que poucos eram os bastante ousados para
nela penetrar.

Era também nesse salão que se erguia, encostado à parede que dava para oeste, um
gigantesco relógio de ébano. O pêndulo oscilava para lá e para cá, com um tique-taque
vagaroso, pesado, monótono. E quando o ponteiro dos minutos concluía o circuito do
mostrador e a hora ia soar, emanava dos pulmões de bronze do relógio um som claro,
elevado, agudo e excessivamente musical, enfático e característico que, de hora em hora,
os músicos da orquestra viam-se forçados a parar por instantes a execução da musica
para ouvir-lhe o som: e dessa forma, obrigatoriamente, cessavam os dançarinos suas
evoluções e toda a alegre companhia sentia-se por instantes, perturbada. E enquanto os
carrilhões do relógio ainda soavam, observava-se que os mais alegres tornavam-se
pálidos e os mais idosos e serenos passavam as mãos pela fronte, como se em confuso
devaneio ou meditação. Mas quando os ecos cessavam por completo, leves risadas
imediatamente contagiavam a reunião; os músicos olhavam uns para os outros e sorriam
de seu próprio nervoso e loucura, fazendo votos sussurrados, uns aos outros para que o
próximo carrilhoar do relógio não produzisse idêntica emoção. E, no entanto, passados os
sessenta minutos ( que abarcam três mil e seiscentos segundos do Tempo que voa), ou de
novo outro carrilhoar do relógio, e de novo se viam a mesma perturbação, o mesmo
tremor, as mesmas atitudes meditativas a despeito, porém, de tudo isso, que esplêndida e
magnífica folia.

O duque tinha gostos característicos. Sabia escolher cores e efeitos. Desprezava os
ornamentos apenas em moda. Seus desenhos muito audazes e vivos, e suas concepções
esplendiam com um lustre bárbaro. Muita gente o julgava louco. Mas seus cortesãos
achavam que não. Era preciso ouvi-lo, vê-lo e tocá-lo, para se estar certo que ele não o
era.

Por ocasião dessa grande festa, dirigira ele próprio, em grande parte, os mutáveis adornos
dos sete salões e fora o seu próprio gosto orientador que escolhera as fantasias. Mas não
havia dúvidas de que eram grotescas. Havia muito brilho, muito esplendor, na coisa
berrante e fantástica - muito disso que depois se viu no Hernani. Havia formas
arabescas, com membros e adornos desproporcionados.

Havia concepções delirantes, como criações de louco; havia muito de belo e muito de
atrevido, de esquisito, algo de terrível e pouco do que poderia causar aversão. Na
realidade, uma multidão de sonhos deslizava para lá e para cá nas sete salas. E estes
sonhos giravam de um canto para outro, tomando a cor das salas, e fazendo a música
extravagante da orquestra parecer o eco de seus passos.

Mas logo soava o relógio de ébano que se erguia na parede de veludo. E então, durante
um instante, tudo parava e tudo silenciava exceto a voz do relógio. Os sonhos paravam,
como que gelados. Os ecos do carrilhão, porém, morriam - haviam durado apenas um
instante -, e uma leve gargalhada, mal contida, acompanhava os ecos que morriam. E
logo depois a música explodia, e os sonhos reviviam e rodopiavam mais alegremente do
que dantes, tingiam da cor das janelas multicoloridas, através das quais se filtravam ,os
luminosos raios das trípodes.

Mas então nenhum dos mascarados se aventurava até a sala que, entre as sete, mais ao
ocidente se encontrava, porque a noite estava declinando e ali dimanava luz mais
vermelha através das vidraças sangüineas, e o negrol dos panejamentos tenebrosos
apavorava. E, para aqueles cujos pés pisavam o tapete negro, do relógio de ébano ali perto
provinha rumor abafado, mais solenemente enfático do que o que alcançava os ouvidos
de quem se comprazia nas alegrias dos outros aposentos mais distantes.

Mas esses outros aposentos estavam densamente apinhados e palpitava febrilmente o
coração da vida. E a folia continuou a rodopiar, até que afinal o relógio começou a soar a
meia-noite. E, então a música parou, como já disse; e aquietaram-se as evoluções dos
dançarinos; e, como dantes, houve uma perturbadora parada de tudo. Mas agora o
carrilhão do relógio teria de bater doze pancadas. E por isso aconteceu talvez que maior
número de pensamentos, e mais demoradamente, se inserisse nas meditações daqueles
que, entre os que se divertiam, meditavam. E por isso talvez aconteceu também que,
antes de silenciarem por completo os derradeiros ecos da última pancada, muitos foram
os indivíduos, em meio a multidão, que puderam certificar-se da presença de um vulto
mascarado que até então não havia chamado a atenção de ninguém, tendo-se espalhado,
aos cochichos, a notícia dessa nova presença elevou-se imediatamente dentre a turba um
burburinho ou murmúrio que exprimia desaprovação e surpresa a princípio e, terror,
horror e náusea.

Numa assembléia de fantasmas, tal como a descrevi, bem se pode supor que tal agitação
não podia ter sido causada por aparência vulgar. Na verdade, a licença carnavalesca da
noite quase ilimitada; mas o vulto em questão excedia o próprio Herodes em
extravagância e ia além dos limites indecisos de decência exigidos pelo próprio príncipe.

Há no coração dos mais levianos fibras que não podem ser tocadas sem emoção. Mesmo
para os mais divertidos, para quem a vida e a morte são idênticos brinquedos assuntos
com os quais não se pode brincar. Todos os presentes de fato, pareciam agora sentir
profundamente que nos trajes e atitudes do estranho não havia finura nem conveniência.

Era alto e lívido, e envolvia-se, da cabeça aos pés, em mortalhas tumulares. A máscara
que ocultava o rosto era tão de modo a quase representar a fisionomia de um cadáver
enrijecido que a observação acurada teria dificuldade em perceber o engano. E, contudo,
tudo isso poderia tolerar-se, se não mesmo aprovar-se, pelos loucos foliões, não tivesse o
mascarado ido ao de figurar o tipo da "Morte Rubra". Seu traje estava salpicado de
sangue, e a ampla testa, assim como toda a face, borrifada de rendas placas escarlates.

Quando os olhos do Príncipe Próspero caíram sobre aquela imagem espectral (que, em
movimentos lentos e solenes, como se quisesse representar mais completamente seu
papel, rodopiava aqui e ali entre os dançarmos), viram-no ser tomado de convulsões, a
princípio um forte tremor de pânico ou repugnância, para logo depois enrubescer-se de
raiva.

-Quem ousa - perguntou ele, roucamente, aos cortesãos que o cercavam -, quem ousa
insultar-nos com tão blasfema pilhéria? Agarrem-no e desmascarem-no, para podermos
conhecer quem teremos de enforcar, ao amanhecer, no alto das ameias!

Ao pronunciar estas palavras achava-se o Príncipe Próspero no salão dourado e azul, do
lado do poente. Elas atravessaram todas as sete salas, alta e claramente, pois o príncipe
era um homem ousado e robusto e a música havia silenciado a um gesto de sua mão.

Era no salão azul que se achava o príncipe, tendo ao lado um grupo de cortesãos pálidos.

Logo que ele falou, houve um leve movimento de investida por parte daquele grupo na
direção do intruso que, no momento, se encontrava quase ao alcance da mão, em
passadas firmes e decididas, mais se aproximava do príncipe. Mas em virtude de um
indefinível terror que a todos os presentes causara o louco atrevimento do mascarado,
não se achou que ousasse estender a mão para agarrá-lo. De modo que.sem impecilho,
passou a uma jarda do príncipe, e, enquanto toda a assembléia, como movida por um só
impulso, recuava do centro das salas para as paredes, seguiu ele seu caminho sem deterse
com os mesmos passos solenes e medidos que o haviam distinguido, do salão azul ao
salão purpúreo, do púrpuro ao verde, do verde ao alaranjado, deste ao branco e até o
roxo, sem que um movimento de decisão se fizesse para detê-lo.

Foi então, porém, que o Príncipe Próspero, enlouquecido de vergonha de sua própria e
momentânea covardia, correu precipitadamente através das seis salas, sem que ninguém
o seguisse, pois um terror mortal de todos se apossara. Brandia um punhal
desembanhado e se aproximara, com rápida impetuosidade, a poucos passos do vulto que
se retirava, quando este último, tendo alcançado a extremidade do salão de veludo,
voltou-se subitamente e arrostou seu perseguidor. Ouviu-se um grito agudo e o punhal
caiu, cintilante sobre o negro tapete, onde, logo, instantaneamente, tombou mortalmente
abatido o Príncipe Próspero. Então, recorrendo a coragem selvagem do desespero,
numerosos foliões lançaram-se sem demora no lúgubre aposento, e, agarrando o
mascarado, cujo alto vulto permanecia ereto e imóvel dentro da sombra do relógio de
ébano, pararam, arfantes de indizível pavor, ao sentir que nenhuma forma tangível se
encontrava sob a mortalha e por trás da mascara cadavérica, quando as seguraram com
violenta rudeza.

E foi então que reconheceram estar ali presente a "Morte Rubra". Ali penetrara, como um
ladrão noturno. E um a um, foram todos os foliões, nos salões da orgia, orvalhados de
sangue, morrendo na mesma posição desesperada de sua queda. E a vida do relógio de
ébano se extinguiu com a do último dos foliões. E as chamas das trípodes expiraram. E o
ilimitado poder da Treva, da Ruína, e da "Morte Rubra" dominou tudo.

terça-feira, outubro 24, 2006

O VAMPIRO DO CASTELO DE BRAN

O VAMPIRO DO CASTELO DE BRAN

Autor: Paulo Soriano
1
O peso opressivo do luar, incidindo sobre os meus longos cabelos negros, escorria, num fluxo impiedoso, caudaloso, sobre os meus ombros, impelindo-me para frente, como se eu estivesse tocada pelo vento que precede às mais violentas tempestades.

Eu caminhava sozinha – descalça e andrajosa – por uma estrada milenar, aberta pelos eslavos, mas pavimentada pelos romanos, que ladeia os vales relvosos, salpicados de árvores agulhosas. Sobre esses extensos vales, as montanhas escarpadas deitam, eternamente, as suas sombras melancólicas, que azulam e amolecem ao luar. Eu saíra de Vesta Verde quando anoitecera, já corroída pela fome e pelo cansaço. A fria madrugada grassava e eu precisava buscar um refúgio para um merecido descanso.

Eu devia ter, de alguma forma, errado o caminho. Porque, sob os meus pés descalços, a estrada ganhara uma aspereza incomum, serpenteando para cima, galgando as encostas de uma montanha cuja imponência a sombra da noite não deixava margem à imaginação.

O luzeiro que vi adiante me animou. Assim, redobrei a intensidade de meus passos e em breve alcancei o passadiço que conduzia aos portões de um castelo milenar, uma estrutura negra, pesada, sulcada por estrias ancestrais, onde as sombras e as heras adensavam e buscavam o lúgubre mergulho.

O luzeiro era, na verdade, uma simples lanterna, que um homem idoso empunhava em riste, em uma das torres da construção secular. Decerto que ele me viu, porque não foi necessário que eu tangesse as cordas que faziam girar os sinos da campainha. Por uma abertura em arco, ao sopé da torre, o homem saiu ao meu encontro, tomando-me pelas mãos. Eram mãos pálidas, incrivelmente frias, extremadas por longas e amoladas unhas. Quando o homem ergueu a lanterna para subir as úmidas escadas de pedra, pude constatar que a sua fisionomia era assustadora. Naquele rosto exangue, encimado por um crânio completamente nu, dois olhos negros, duros, ornados de grossas sobrancelhas, bailavam sobre olheiras violáceas, que caíam, desfalecidas, em dobras pesadas, sobre os ossos salientes dos maxilares. O nariz era finíssimo, recurvo como um gancho e, dos seus lábios, eu nada pude ver, porque, naquela rachadura, insinuava-se apenas a brancura dos dentes pontiagudos, quase mergulhados sobre a curva suave que lhe compunha o queixo. E como eram asquerosos aqueles negros tufos de pêlos desgrenhados, que se esgueiravam a partir do poço escuro das orelhas pontudas, repuxadas como as de um demônio helênico!

- É tarde – disse-me ele. – Já não tenho como te alimentar, pobre criaturinha bela e suja. Mas te darei um quarto para dormir, onde te envolverás nos flácidos vincos de teu roto vestido. Fica a cela no cume da torre e logo lá chegaremos. Lá há água, se tiveres sede. E há um catre pouco confortável. Desculpa-me a franqueza, mas não costumo hospedar gente desconhecida. Nem mesmo os nobres, como eu, gozam de minha hospitalidade, se não tenho como me certificar de sua verdadeira origem e intenções.

Ao dizer isso, logrou girar a chave no caixilho, fazendo-me menção para que entrasse. Foi o que eu fiz. Imediatamente, a porta se encerrou atrás de mim.

- Chamo-me Dragoş Valicescu, sou o Terceiro Conde de Bran, e vivo completamente só – disse, enquanto descia vagarosamente as escadas. – E não me espere pela manhã, porque sou notívago e odeio a luz do Sol – concluiu, com um quê de sensualidade malévola em sua voz de animal.

Estava quase amanhecendo quando fechei o único postigo do quarto da torre e procurei descansar no desconforto daquele catre infeliz, onde a escuridão cairia sobre mim como uma negra mortalha, pegajosa e fria.

2

Quando despertei, já anoitecera. O postigo da torre achava-se escancarado e sobre o parapeito ardia um enorme círio, cuja ereta chama não se movia. A porta do quarto jazia aberta, e a silhueta longelínea de Dragoş, o Conde de Bran, desenhava-se como uma sombra nefasta, a enturvar os umbrais.

- Tu deves estar faminta – disse-me ele. – Aproxima-te de mim, linda e desolada jovem, que eu te trouxe algo para comer.

De fato, eu estava faminta. Extremamente faminta. Certamente, em toda Romênia, não haveria um ser mais faminto do que eu. Tomei a bandeja de carnes e frutas que ele trazia e a depositei sobre a cama. Mas não me debrucei sobre a iguaria.

- Dá-me um beijo em agradecimento – ele exigiu, em tom feroz.

O Conde avançou, tomou-me pelas mãos, e mergulhou o arremedo de lábios em minha boca, sorvendo a minha saliva com uma fúria bestial. Seus dentes longos tremiam como resultado de uma convulsão atroz.

Ao contato com a língua daquele homem decrépito, a minha fome recrudesceu. Sim, recrudesceu assustadoramente. Quase tremi, assaltada por uma ansiedade ensandecida, por uma compulsão tão premente que somente os animais mais ferozes podem experimentar. E, num frêmito, os meus dentes caninos, até então retraídos, deslizaram celeremente, conformando-se em presas amoladas, próprias para perfurar e dilacerar.

Depois do beijo, veio o peso opressivo do luar, que se infiltrava pelo postigo aberto. Incidindo sobre os meus longos cabelos negros, o luar escorria, num refluxo impiedoso, caudaloso, sobre os meus ombros, impelindo-me para frente, para a garganta do Terceiro Conde de Bran, onde minhas presas aguçadas afundaram profundamente e de onde eu extraí a seiva morna, densa, repleta de delícias, que saciou a minha fome infinita. E pouco me custará a encontrar a cripta do castelo, que doravante será minha; lá, regenerada, dormirei profundamente, por vários dias, o meu tranqüilo sono de morte.
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Nota do autor: qualquer semelhança com Stoker e Murnau não é mera coincidência.

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O ABRIGO


O Abrigo
Por Roberto A. Brandão

Nós já estávamos lá há alguns dias. Nossos suprimentos estavam praticamente esgotados. Um único garrafão de 20l de água era o que tínhamos . Comida? Não mais que 20 pães, uma barra de queijo e 2 pacotes de biscoitos. Dormíamos mal em nosso esconderijo, sempre nos revezando em turnos de 2 horas para cada. Afinal, devíamos estar atentos a única porta de entrada e saída daquele porão frio e escuro em que nos encontrávamos. Porta esta que foi cuidadosamente reforçada com tábuas e pregos encontrados no próprio porão. Lá fora ouvia- se apenas os passos... e inconstâncias sonoras; como que lamentos vindos de gargantas sem cordas vocais. Às vezes nos parecia familiar certos fonemas... palavras. Como podia isso estar acontecendo?! Como aquelas coisas surgiram? Porque surgiram?
Éramos em quatro; presos em nosso próprio abrigo. Eu, considerado líder pelos outros. Meu primo Lucas, excelente pessoa; formado em Jornalismo; dado a bebedeiras, surf e belas mulheres. Meu outro primo, Cláudio; era um cara mais sério que Lucas, porém não menos excelente. Formado em Física, já cursando um Doutorado, talvez fosse o mais inteligente de nós. Por último, meu irmão Miro, o qual não palavras para descrever tamanho pessimismo e ironia que habita aquela mente perturbada . Somente por causa dele ainda estávamos no abrigo, pois toda vez que planejávamos uma fuga ele nos aconselhava do contrário. De qualquer modo nos dávamos muito bem.
-- Temos que sair daqui! Em pouco tempo não teremos o que beber ou comer—disse Lucas com uma certa firmeza em sua voz.
-- Concordo—retruquei. Ou saímos agora ou eles darão um jeito de entrar.
-- É? E como vamos fazer isso? Ao que me recordo não aprendi a desaparecer e aparecer em outro canto—ironizou meu irmão com um sorriso sarcástico. Vamos ficar por aqui. Uma hora essas coisas vão embora. Aí a gente sai—completou ele, voltando para os papelões onde dormíamos.
-- Deixa de ser burro, Miro! Eles têm todo o tempo do mundo. Nós, não!—ao falar isso os 3 me fitaram apreensivos.
-- Beto está certo, Miro—disse Cláudio após alguns minutos. Nós teremos alguma chance de sobreviver se sairmos daqui.
--- Vamos ao plano—falou Lucas decididamente.
Eu tinha uma pistola cal. 380 como 12 tiros, a qual havia comprado há algum tempo, sendo- me de grande valia naquela ocasião. Meu irmão estava com um revólver cal. 38, que pertenceu ao nosso falecido pai. Tinha, apenas, 8 munições. No canto esquerdo do porão, próximo à porta, havia uma caixa de ferramentas da qual Lucas tirou um facão um pouco enferrujado. Quanto a Cláudio coube- se a incumbência de retirar, cautelosamente, as tábuas da porta. Pois bem. O plano era o seguinte: deixar adentrar a primeira criatura para que nós a eliminássemos, ao passo que Cláudio verificaria se outros viriam ou não. Tentaríamos não disparar um único tiro a fim de não atrair a atenção dos demais. Se isto ocorresse estaríamos perdidos.
Cláudio pôs- se a retirar as tábuas, lenta e cuidadosamente. Ao término da tarefa ele conseguiu abrir a porta; apenas alguns centímetros. Foi o suficiente para observar o exterior que, com grande ansiedade, almejávamos. Lá fora ele observou um dos seres que tanto nos atormentava. Era um morto! Sim! Um morto- vivo! Figura sórdida e desalmada que, agora, perambulava pelas ruas do planeta. Mas não só um! Eram milhões... e milhões, devorando as carnes de nossos semelhantes numa fome insana!
A coisa voltou- se para Cláudio e, num ímpeto bestial, o agarrou pelo braço, puxando- o para fora do porão. Ao tentarmos ajudá- lo ouvimos sua última ordem: -- Fujam seus tolos! Os outros estão vindo!
Saímos correndo feitos loucos pela casa, que um dia foi bela e cheia de alegria, enquanto ouvíamos os gritos de Cláudio e identificávamos palavras como “ cérebro, carne” , proferidas por aquelas aberrações.
Outros mortos postaram- se à nossa frente, o que foi necessário fazer uso de nossas armas. Explodi a cabeça de um deles como um tiro certeiro. Lucas decapitou outro com a precisão de uma guilhotina. Já meu irmão não teve a mesma sorte que nós. Apesar de também acertar um tiro em uma das várias criaturas, que agora chegavam, foi mordido por outro monstro que aproximou- se sorrateiramente. Com isso ele gritou: -- Porra! Eu disse que não ia dar certo! Quanto a isto só pude lamentar tamanha desgraça!
-- Vão vocês! Eu ficarei aqui para segurar essas bestas imundas! Já estou morto, mesmo!
O que fazer diante de tal situação? Ser solidário e ficar para morrer como meu irmão? Ou ser covarde e fugir feito um louco ensandecido, procurando salvar a própria vida? A segunda opção me pareceu melhor.
Fugimos eu e Lucas, ouvindo meu irmão esbravejar em meio aos disparos do revólver; até que estes cessaram.
À nossa frente ainda restava um imenso corredor do antigo casarão e logo após o hall de entrada. Depois disto estaríamos livres. Ou não?
No corredor, passamos a caminhar cautelosamente, haja vista, haver muitas portas de cômodos, aparentemente fechadas.
-- Não estou gostando disso, Beto! Está muito quieto aqui! – disse Lucas, um tanto apreensivo. Balancei a cabeça positivamente enquanto me esgueirava pela parede suja de sangue e tripas. Há poucos metros de uma porta podíamos ouvir aquelas coisas; sempre mastigando; sempre com fome. Pelo canto da porta, sem ser visto, constatei a presença de 3 zumbis devorando os restos de uma pessoa que não consegui reconhecer, tal era o estado desfigurado de sua face e corpo. Continuamos prosseguindo, passando, como muito medo, pelas portas dos outros cômodos vazios, até chegarmos no hall de entrada da mansão. Lá pude perceber a gravidade de nossa situação!
Trêmulo, contabilizei 13 mortos- vivos em um espaço de 8 metros quadrados; era o hall. Quando voltei- me para meu primo este me perguntou qual o motivo de meu espanto.
-- Olhe você mesmo! – sussurrei com um ar de surpresa e desolação.
-- Como vamos passar por ali?! – perguntou- me embasbacado.
-- Não sei, cara!
Arriscamo- nos um pouco ao ficarmos parados, no corredor, em frente a porta, sem saber qual decisão tomar.
-- Tive uma idéia, Lucas!
-- Qual?
-- Vamos pegar um cadáver qualquer e jogar para eles. Se funcionar, será uma distração e nós fugiremos.
-- Tudo bem. Mas teremos que voltar o corredor até sabe- se lá onde!
Voltamos o corredor, tendo cuidado para não interromper a funesta refeição, chegando ao local onde meu irmão havia perecido. Seu cadáver jazia inerte e esquartejado no chão frio que o acolhia. Senti grande amargura e desespero, mas, era a nossa única salvação. Pegamos os poucos restos mortais, embrulhados nas roupas dele mesmo e retornamos pelo corredor até o hall. Lucas também pegou o revólver. Apenas um cartucho intacto, disse ele.
Da porta joguei os restos de Miro na direção de algumas aberrações. Deu certo! Com a fome que eles estavam aquilo era o melhor banquete e nossa presença já não mais importava. Começamos a travessia pelo hall, muito apreensivos. Já havíamos combinado que se algo desse errado, quem escapasse deveria correr como um louco, fugindo daquela insanidade, sem olhar para trás!
Ah! Se meu irmão estivesse aqui... diria que o plano não iria dar certo.
Uma daquelas bestas apocalípticas, não satisfeita como a refeição que lhe dera, agarrou Lucas pela perna, derrubando- o ao chão. Isso atraiu os outros, lógico! Tratava- se de carne fresca! Eles o agarraram, esquecendo- se de mim por completo, dilacerando- lhe o tórax. Nesse momento percebi Lucas puxar, com suas últimas forças, o gatilho do revólver, dando cabo da própria vida! Já restava mais nada a fazer naquele local dos infernos. Fugi aos prantos, daquele local nefasto, pela rua, esquivando- me de alguns mortos que caminhavam; tentavam me agarrar. Encontrei um carro aberto com a chave no banco e monte de carne humana espalhada pelo banco e pelo chão. Dava para ver uns tufos de cabelo, um olho e muito sangue. Não pensei mais! Entrei no carro, limpando as vísceras que ali estavam, dei a partida e saí em disparada, atropelando mais daquelas coisas que estavam por toda a cidade.
Até hoje não consigo dormir direito. Estou em outro abrigo, agora. Tenho como única companhia minha pistola cal. 380. Tenho, também, mais água e comida do que o outro abrigo de 3 semanas atrás. Também tenho a certeza de que minhas provisões irão acabar.
Oh! Eles já batem à porta; e murmuram fonemas desconexos... aquele cheiro putrefato invade o abrigo. Só posso esperar!

Roberto A. Brandão (vulgo Beto Satanás)