quarta-feira, julho 25, 2007

A QUEDA DA CASA DE USHER

O blog da Irmandade das Sombras orgulhosamente apresenta um dos maiores clássicos da literatura fantástica universal. De Edgar Allan Poe:











A QUEDA DA CASA DE USHER







"Son couer est un luth suspendu;Sitôt qu'on le touche, il résonne".
Du Beranger


Durante todo um dia pesado, escuro e mudo de outono, em que nuvens baixas amontoavam-se opressivamente no céu, eu percorri a cavalo um trecho de campo singularmente triste, e finalmente me encontrei, quando as sombras da noite se avizinhavam, à vista da melancólica Casa de Usher. Não sei como foi - mas, ao primeiro olhar que lancei ao edifício, uma sensação de insuportável angústia invadiu o meu espírito. Digo insuportável, pois tal sensação não foi aliviada por nada desse sentimento quase agradável na sua poesia, com o qual a mente ordinariamente acolhe mesmo as imagens mais cruéis por sua desolação e seu horror. Olhei para a cena que se abria diante de mim - para a casa simples e para a simples paisagem do domínio para as paredes frias - para as janelas paradas como olhos vidrados - para algumas moitas de juncos - e para uns troncos alvacentos de árvores mortas - com uma enorme depressão mental que só posso comparar, com alguma propriedade, com os momentos que se sucedem ao despertar de um fumador de ópio - com o momento amargo de retorno à rotina - com o terrível cair do véu. Eu tinha no coração uma invencível tristeza onde nenhum estímulo da Imaginação podia descobrir qualquer coisa de sublime. Que era - pensava eu, imóvel - que era isso que tanto me atormentava na contemplação da Casa de Usher? Era um mistério inteiramente impenetrável; também não consegui compreender as idéias nebulosas que me assaltaram. Fui forçado a contentar-me com a conclusão insatisfatória de que enquanto, sem dúvida, há combinações de coisas simples que têm o poder de assim nos afetar, a análise desse poder ainda está entre as cogitações além do nosso alcance. Refleti que era possível que um simples arranjo diferente dos pormenores do cenário, das minúcias do quadro, seria suficiente para modificar, ou talvez para aniquilar a sua capacidade de suscitar impressões penosas; e, procedendo de acordo com esta idéia, dirigi o meu cavalo para a borda escarpada de uma lagoa, ou antes de um charco sombrio e lúgubre que formava um sereno espelho perto da residência, e olhei para baixo - mas com uma emoção ainda mais profunda do que antes para as imagens invertidas das junças cinzentas, e dos troncos espectrais, e das janelas paradas com olhos mortiços.

Apesar de tudo, resolvi então ficar durante algumas semanas nessa mansão de melancolia. Seu proprietário, Roderick Usher, fora um dos meus alegres companheiros de infância; mas muitos anos haviam decorrido depois que nos tínhamos encontrado pela última vez. Uma carta, entretanto, fora, havia pouco, ter às minhas mãos num recanto distante do país - uma carta dele - a qual, no seu tom grandemente impertinente, não admitia outra resposta, que a minha presença. A letra evidenciava a sua agitação nervosa. Falava numa doença física aguda - num distúrbio mental que o atormentava - e num grande desejo de ver-me, por ser eu o seu melhor e, mesmo, o seu único amigo pessoal, esperando que a satisfação de me tornar a ver trouxesse algum alívio aos seus padecimentos. Foi a maneira como tudo isto, e muito mais do que isto, me foi dito - foi o coração que impregnava o seu pedido, o que não me permitiu um momento de hesitação; e, assim obedeci em seguida ao que, todavia, considerei uma convocação bastante singular.

Embora em nossa meninice tivéssemos sido companheiros muito íntimos, eu realmente conhecia pouca coisa do meu amigo. A sua reserva sempre fora excessiva e habitual. Sabia, contudo, que a sua família, muito antiga, se distinguia, através de muito tempo, por uma particular sensibilidade de temperamento, assinalando-se, em muitas gerações, por muitas obras de arte exaltada, e que tivera, recentemente, gestos repetidos de caridade generosa, embora cheia de discrição, manifestando uma devoção apaixonada pelas sutilezas, talvez mais ainda do que pelas banais belezas ortodoxas da ciência musical. Eu soubera, também, do fato muito notável de que o tronco genealógico de Usher, venerável como era, em nenhum período da sua existência dera origem a algum ramo que se conservasse; por outras palavras, que a família inteira só se perpetuava por descendência direta, e sempre se conservara assim, com variações muito temporárias e efêmeras. Enquanto observava mentalmente a perfeita concordância do caráter da propriedade com o suposto caráter dos habitantes e enquanto especulava sobre a possível influência que um, na longa ronda dos séculos, podia ter exercido sobre o outro, - ocorreu-me que essa falta de ramos colaterais e a conseqüente transmissão direta, de pai para filho, do patrimônio e do nome, tinha, finalmente, identificado a ambos de tal forma que dissolvera o título original da propriedade na denominação equivoca e estranha de "Casa de Usher" - denominação que parecia incluir, na mente dos camponeses que a usavam, a família e o solar da família.

Eu disse que só o efeito da minha experiência algo tanto pueril - essa de olhar para o interior da lagoa - bastara para acentuar a mais singular impressão. Não pode haver dúvida de que a consciência do rápido progresso da minha superstição - por que não haveria de dizer assim? - serviu principalmente para acelerar esse mesmo progresso. Assim, já o sei suficientemente, é essa a lei paradoxal de todos os sentimentos que têm o terror por base. E podia ter sido unicamente por esta razão que, quando novamente levantei os olhos para a própria casa, abandonando a contemplação da sua imagem na água, cresceu na minha imaginação uma estranha idéia - uma idéia tão ridícula, na verdade, que só lhe faço alusão aqui para mostrar a intensidade das sensações que me oprimiam. Eu tinha exaltado a minha imaginação de forma a realmente acreditar que em torno de toda a casa e do terreno flutuava uma atmosfera peculiar a ambos e à sua vizinhança imediata - uma atmosfera que não tinha afinidade com o ar do céu, mas que se havia evolado das árvores senis, das paredes cinzentas, do pântano silente - um vapor pestilento e místico, pesado, inerte, mal perceptível, cor de chumbo.

Repelindo do meu espírito o que deve ter sido um sonho, examinei mais de perto o aspecto real do edifício. A sua feição principal parecia ser a de uma antigüidade excessiva. A ação dos séculos fora profunda. Ínfimos fungos cobriam-lhe todo o exterior, formando um debrum finamente tecido, que pendia dos beirais. Entretanto, não havia estragos mais acentuados. Nenhuma porção de alvenaria ruíra; e parecia haver uma extravagante incompatibilidade entre a ainda perfeita adaptação das partes e a condição precária de cada pedra. Nisto havia algo que me recordava a integridade aparente de uma velha obra de madeira que apodreceu no transcuro de longos anos nalgum subterrâneo esquecido, sem receber o contacto da atmosfera exterior. Além desta indicação de velhice extrema, contudo, a estrutura dava poucos indícios de instabilidade. Talvez o olho de um observador atento tivesse descoberto a única fenda visível, a qual, estendendo-se do teto, na fachada, descia pela parede abaixo, formando ziguezagues, até se perder nas águas sombrias do charco.

Reparando nestas coisas, transpus um curto caminho que conduzia à casa. Um criado tomou o meu cavalo e eu penetrei na arcada em estilo gótico do vestíbulo. Um outro criado de passos furtivos conduziu-me depois, em silêncio, através de muitos corredores escuros e intrincados, para o estúdio do seu amo. Muitas coisas que encontrei pelo caminho contribuíram, não sei como, para acentuar as vagas impressões de que já falei. Enquanto os objetos em torno de mim - enquanto as pinturas do teto, as sombrias tapeçarias das paredes, o negrume de ébano dos soalhos, e os fantasmagóricos troféus de armas que retiniam enquanto eu caminhava - eram apenas coisas com as quais eu me acostumara na infância - enquanto eu não vacilava em reconhecer o quanto tudo isto era familiar - ainda me admirava de achar quão pouco familiares eram as impressões que as imagens ordinárias me despertavam. Numa das escadas, encontrei-me com o médico da família. A sua fisionomia pareceu-me encerrar uma mescla de baixa astúcia e de embaraço. Ele cumprimentou-me com qualquer coisa de trepidação e passou. O criado agora abriu uma porta e pôs-me na presença do seu amo.

A peça em que me encontrava era muito espaçosa e alta. As janelas eram compridas, estreitas e pontudas, e colocadas a uma distância tão grande do sombrio soalho de carvalho que se tornavam inteiramente inacessíveis pela parte de dentro. Débeis raios de luz avermelhada coavam-se através das vidraças e das rótulas, servindo para tornar suficientemente distintos os objetos mais proeminentes, em torno; a vista, contudo, esforçava-se em vão por alcançar os cantos mais remotos do aposento, ou os recessos do teto, abobadados e cheios de ornatos. Tapeçarias escuras pendiam das paredes. A mobília era profusa, sem conforto, antiquada, e encontrava-se em estado precário. Muitos livros e instrumentos de música estavam espalhados em torno, mas não conseguiam dar nenhuma vitalidade ao ambiente. Senti que estava respirando uma atmosfera de angústia. Um sopro de profunda, penetrante e irremediável tristeza andava no ar e tudo invadia.

À minha entrada Usher levantou-se do sofá onde estivera deitado em todo o comprimento, e saudou-me com um calor e uma vivacidade que tinha muito, pensei a princípio, de cordialidade exagerada - do esforço constrangido do homem cansado do mundo. Contudo, um olhar à sua fisionomia convenceu-me da sua perfeita sinceridade. Sentamo-nos; e por alguns momentos, enquanto ele não falava, eu o contemplei com um sentimento onde se mesclavam a piedade e o horror. Sem dúvida, homem algum jamais mudara tão terrivelmente, num período tão curto, como mudara Roderick Usher! Foi com dificuldade que pude convencer a mim mesmo a identificar a criatura descorada que estava diante de mim com o companheiro dos meus tempos de menino e adolescente. Entretanto, os traços da sua face tinham sido em todos os tempos notáveis. Um rosto de cor cadavérica; uns olhos grandes, líquidos e luminosos, além de qualquer comparação; lábios um tanto finos e muito pálidos, mas com uma curva de uma beleza notável; um nariz com uma delicada feição hebréia, mas com uma largura de narinas incomum em semelhante tipo; um queixo muito bem modelado, lembrando, com a sua pouca proeminência, falta de energia moral; os cabelos de uma tenuidade e delicadeza de teia; - estas características, com uma expansão irregular acima das fontes, tornavam sua cabeça difícil de ser esquecida. E, agora, o simples exagero do caráter predominante destas feições e da sua expressão habitual constituía uma mudança tamanha que eu como que não tinha certeza com quem estava falando. A atual palidez cadavérica da pele e o atual brilho milagroso dos olhos, acima de tudo, causavam-me admiração e mesmo pavor. Os cabelos sedosos também tinham crescido à vontade, sem cuidado algum, e como, na sua textura de filandras, flutuassem mais do que caíssem pela face, eu não pude, mesmo fazendo um esforço, ligar a sua expressão de arabesco com nenhuma idéia de simples humanidade.

As maneiras do meu amigo logo me chamaram a atenção em virtude de uma incoerência - de uma contradição; o que descobri de uma série de esforços fracos e inúteis para vencer um tremor habitual - uma excessiva agitação nervosa. Para isto, aliás, eu na verdade fora preparado, não menos por sua carta, do que por certas reminiscências de traços infantis e por conclusões tiradas do seu particular temperamento e constituição física. Os seus movimentos eram alternadamente vivazes e pesados. A sua voz variava rapidamente de uma indecisão trêmula (quando a vitalidade parecia totalmente esgotada) e essa espécie de concisão energética - essa elocução abrupta, pesada, tardonha e soturna - essa voz gutural, de chumbo, perfeitamente modulada, que pode ser observada nos beberrões perdidos ou nos incorrigíveis fumadores de ópio, durante os períodos da sua mais intensa excitação.

Foi assim que ele me falou do objeto da minha visita, do seu profundo desejo de me ver, e da consolação que esperava receber de mim. Entrou, com alguma profundidade, no que julgava ser a natureza de sua doença. Disse que se tratava de um mal constitucional, de família, e para o qual já desesperara de encontrar remédio - uma simples afecção nervosa, acrescentou imediatamente, que sem dúvida passaria. Manifestava-se através de um número de sensações anormais. Algumas destas, à medida que ele as particularizava, interessaram-me e causaram-me pasmo; entretanto, talvez os termos e a maneira geral do seu modo de narrar exercessem a sua influência. Sofria muito de um aguçamento mórbido dos sentidos; o mais insípido alimento era-lhe insuportável; só podia usar roupas de certo tecido; o aroma de quaisquer flores lhe era opressivo; seus olhos eram torturados mesmo por uma réstia de luz; e havia apenas alguns sons peculiares, e estes de instrumentos de cordas, que não lhe causavam horror.

Compreendi que estava escravizado a uma sensação anormal de medo. - Vou morrer, disse-me ele, tenho de morrer desta deplorável loucura. Aqui, e só aqui está o meu fim. Tenho medo dos acontecimentos futuros, não por eles mesmos, mas por seus efeitos. Estremeço à idéia de qualquer incidente, mesmo do mais trivial, que possa influir nesta intolerável agitação de espírito. Na verdade, não tenho aversão ao perigo, exceto no seu efeito absoluto - no terror. Nesta condição lastimável e precária, sinto que mais cedo ou mais tarde chegará a ocasião em que terei de abandonar, a um tempo, a vida e a razão, nalguma luta com o cruel fantasma: o MEDO.

Observei ainda, a intervalos, e através de alusões ambíguas e fragmentárias, uma outra característica essencial do seu estado mental. Ele estava acorrentado, por certas impressões supersticiosas com relação à propriedade onde vivia, e donde, por muitos anos, nunca se afastara - com relação a uma influência cuja força hipotética era exposta numa linguagem demasiado nebulosa para que a reproduza aqui - a uma influência que algumas particularidades deforma e de substância da sua casa de família haviam exercido, à força de um longo sofrimento, sobre o seu espírito - a um efeito que a natureza física das paredes cinzentas, das pequenas torres e do turvo pântano em que tudo se mirava, tinha finalmente produzido sobre o moral de sua vida.

Confessou, entretanto, ainda que com hesitação, que grande parte da angústia que assim o atormentava podia ser atribuída a uma origem mais natural e muito mais palpável - à enfermidade longa e implacável - em verdade ao aniquilamento evidentemente próximo - de uma irmã ternamente amada, sua única companheira através de longos anos, seu único e último parente na terra.

- "A morte dela" - disse-me com uma amargura de que nunca posso esquecer-me - "fá-lo-ia (a ele, tão desesperado e fraco) o último sobrevivente da velha estirpe dos Usher." Enquanto falava, a Senhora Madeline (pois assim era ela chamada) passou através de uma parte remota do aposento e, sem ter notado a minha presença, desapareceu. Olhei-a com um grande espanto não isento de receio; e, todavia, achei impossível explicar semelhante impressão. Uma sensação de estupor me oprimia enquanto o meu olhar seguia os seus passos de retirada. Quando uma porta, finalmente, se fechou atrás dela, o meu olhar procurou instintivamente e avidamente a fisionomia do seu irmão; mas ele escondera o rosto entre as mãos, e só pude perceber que uma palidez mais profunda do que a ordinária se espalhara pelos seus dedos emaciados, dos quais gotejavam lágrimas ardentes.

O mal da Senhora Madeline desafiara por muito tempo a habilidade dos médicos. Uma apatia estabilizada, uma lenta e gradual destruição física, e, freqüentes embora rápidas afecções de aspecto parcialmente cataléptico, eram o diagnóstico habitual. Até então, ela lutara firmemente contra as investidas do mal, e não se resolvera ainda a entregar-se à cama; mas, ao cair da noite do dia de minha chegada à casa, submeteu-se (conforme seu irmão me relatou mais tarde numa indizível agitação) à força deprimente da enfermidade implacável; e compreendi que o olhar que eu obtivera de sua pessoa seria provavelmente o último que obteria dela - que aquela dama, pelo menos enquanto vivesse, nunca mais seria vista por mim.

Durante vários dias depois deste fato, o seu nome não foi mencionado nem por Usher nem por mim; e durante esse período, tive um grande trabalho para mitigar a melancolia do meu amigo. Pintávamos e líamos juntos, ou eu escutava, como num sonho, as extravagantes improvisações da sua guitarra. E assim, à medida que uma intimidade cada vez mais profunda me levava mais francamente aos recessos do seu espírito percebi, com amargura crescente, a inutilidade de todas as tentativas para animar uma mente que impregnava de sombras, numa como constante irradiação de angústia, como se se tratasse de uma qualidade positiva inerente, todos os objetos do universo moral e físico.

Terei sempre a recordação das horas solenes que assim vivi em companhia apenas do Senhor da Casa de Usher. Contudo, falharei em qualquer tentativa para transmitir uma idéia do caráter exato dos estudos, ou das ocupações em que ele me envolveu. Um idealismo exaltado e altamente inquietante lançava um brilho cintilante por cima de tudo. As suas longas melopéias fúnebres andarão para sempre em meus ouvidos. Entre outras coisas, conservei penosamente a recordação de uma singular amplificação, ou antes, perversão de extravagante ária da última valsa de Von Weber. Das pinturas nas quais a sua fantasia requintada se comprazia, e que cresciam, pincelada a pincelada, atingindo uma fase na qual eu experimentava uma profunda emoção, sem lhe saber a causa - dessas pinturas eu me esforçaria em vão por dar aqui mais do que uma pálida imagem, valendo-me do âmbito da palavra escrita. Pela mais alta simplicidade, pela clareza dos seus traços, ela atraía e prendia a atenção. Se algum mortal pintou algum dia uma idéia, esse mortal foi Roderick Usher. Para mim, pelo menos, nas circunstâncias que então me cercavam, vinha das puras abstrações que o hipocondríaco intentava lançar na tela, uma sensação que jamais se repetiu em mim, nem mesmo na contemplação de certas fantasias de Fuseli, bastante arrebatadas, mas certamente concretas.

Uma das concepções fantasmagóricas de meu amigo, que não participava tão rigidamente do espírito de abstração, pode ser aqui delineada, embora de uma maneira precária. Um pequeno quadro apresentava o interior de uma abóbada ou túnel imensamente longo e retangular, com paredes baixas, lisas, brancas e sem interrupção ou ornato. Certos pontos acessórios do desenho serviam para dar a idéia de que essa escavação estava situada a uma profundidade excessiva, abaixo da superfície da terra. Nenhuma saída era visível em nenhuma parte da sua extensão, e não havia nenhuma tocha ou outra fonte artificial de luz; contudo, uma avalanche de raios luminosos invadia tudo, e banhava a cena com um esplendor impróprio e espectral.

Falei há pouco desse estado mórbido do sentido da audição que lhe tornava intolerável qualquer música, exceto certos efeitos de instrumentos de corda. Talvez fossem os estreitos limites da guitarra em que ele por isso se confinava, o que deu origem, em grande parte, ao caráter fantástico das suas composições. Mas a arrebatada facilidade dos seus improvisos não podia ser assim explicada. Deviam ter sido, de fato eram tanto a música como a letra das extravagantes fantasias (pois ele não raro acompanhava a sua música com improvisos poéticos) o resultado dessa intensa concentração e atividade mental, à qual aludi anteriormente como observável apenas em dados momentos da mais elevada exaltação artificial. Recordo facilmente as palavras de uma rapsódia. Talvez esses versos tenham me impressionado mais profundamente porque, na sua significação mística e íntima me parecesse perceber e pela primeira vez uma inteira consciência por parte de Usher do vacilar do trono da sua nobre razão. O poema intitulado "o Solar dos Espectros" era assim em essência:

I
Nos nossos vales muito verdesFreqüentados pelos anjos bons,Outrora um belo e soberbo solar -Um radioso palácio - erguia a frontaria.No domínio do monarca Pensamento,Ele se elevava!Jamais serafim algum estendeu as asas.Sobre palácio que se lhe aproximasse em beleza!

II
Bandeiras amarelas gloriosas douradasNo seu topo flutuavam ondulavam.(Isto - tudo isto - ocorreu noutros temposQue vão longe)E cada leve sopro que perpassava,Naqueles dias suaves,Ao longo das muralhas embandeiradas,Era como um perfume alado.

III
Os que cruzavam aquele vale felizViam através de duas janelas luminosasEspíritos movendo-se musicalmente,Ao ritmo de um melodioso alaúde,Em torno de um trono, onde, sentado,(Como o filho de um deus!)Numa pompa digna da sua glória,Aparecia o soberano desse império.

IV
E cintilante de pérolas e rubisEstava a bela porta do solarPela qual passava, passava, passava,Sempre a rutilar,Uma multidão de Ecos, cujo doce ofícioEra apenas cantar,Com vozes de uma beleza inefável,O espírito e a sabedoria do seu rei.

V
Entes do mal, porém, vestidos de luto,Assaltaram a alta morada do monarca;(Ah! choremos, porque jamais outro amanhãBrilhará sobre esse ser desolado!)E, em torno da sua mansão, a glóriaQue, purpureando-se, desabrochava,Não é mais que uma vaga recordação de lendaDe uma época amortalhada.

VI
E os viajantes que agora cruzam aquele vale,Pelas janelas avermelhadas, vêemGrandes formas que se movem fantasticamenteAo som de uma melodia destoante;Enquanto, como um rápido rio espectral,Pela porta pálida,Uma multidão medonha se precipita sem cessar,E ri - sem jamais sorrir.

Recordo-me, perfeitamente, de que sugestões despertadas por esta balada nos levaram a uma corrente de pensamentos onde veio à tona uma opinião de Usher, que menciono não tanto pela sua novidade (pois outros homens assim também pensaram), como pela pertinácia com que ele a defendeu. Esta opinião, na sua forma geral, era a da sensibilidade das coisas vegetais. Mas na sua fantasia desordenada, a idéia assumira um caráter mais ousado, e ia, sob certas condições, até o reino dos inorgânicos. Faltam-me palavras para exprimir toda a extensão, ou o seu fervoroso abandono a essa idéia. A crença, entretanto, estava ligada (como anteriormente aludi) às pedras cinzentas do lar dos seus avós. As condições desta sensibilidade tinham sido aqui, segundo ele imaginava, cumpridas na metódica justaposição das pedras - na ordem da sua disposição, tanto como na dos muitos fungos que se espalhavam por elas, e das árvores existentes no terreno - acima de tudo, na longa e intacta duração dessa disposição, e na sua reduplicação nas águas paradas do pântano. A prova - a prova da sensibilidade - devia-se observar, disse ele (e aqui estremeci quando ele falou), na condensação gradual, mas certa, da atmosfera própria a essas águas e a essas paredes. O efeito era perceptível, acrescentou ele, nessa muda, mas importuna e terrível influência que durante séculos tinha formado os destinos de sua família, e que fez dele o que agora eu estava vendo: o que ele era. Tais opiniões não necessitam de comentários e eu não os farei.

Os nossos livros - os livros que, através de anos, tinham exercido uma influência não pequena na vida mental do enfermo - estavam, como se pode prever, em estrita harmonia com esse caráter fantástico. Nós nos debruçávamos juntos sobre obras como "Ververt et Chartreuse"; de Gresset; "Belphegor" de Machiavelli; "Heaven and Heil"; de Swedenborg; "Subterranean Voyage of Nicholas KIimm" de Holberg; "Chiromancy" de Robert Flud, de Jean d'Indagine, e de Dela Chambre; "Journey into the Blue Distance" de Tieck e "City of the Sun" de Campanella. Um volume favorito era a pequena edição do "Directorium Inquisitorium", pelo dominicano Eymeric de Girone; e havia trechos em Pomponius Mela, sobre os quais Usher ficava sonhando horas a fio. O seu principal prazer, entretanto, encontrava-se na leitura de um curioso e excessivamente raro in quarto em estilo gótico - o manual de uma igreja esquecida - Vigiliae Morluorum Secundum Chorum Ecclesiae Maguntinae. Não pude deixar de pensar no extravagante ritual desse livro, e na sua provável influência sobre o hipocondríaco, quando, certa noite, tendo-me ele informado bruscamente que a Senhora Madeline falecera, externou a sua intenção de guardar o cadáver durante uma quinzena (antes do enterro final) num dos numeros nichos existentes nas paredes principais do edifício. A razão aparente, entretanto, invocada para esse singular procedimento, era de natureza que não me compete discutir. O irmão da morta fora levado a essa resolução (assim me disse ele) à vista do caráter extraordinário da enfermidade da defunta, e também por causa da curiosidade ávida e importuna por parte dos médicos dela e da distância em que se encontrava o jazigo da família. Não negarei que quando me lembrei da fisionomia sinistra da pessoa com quem me encontrei na escada, no dia de minha chegada à casa, não experimentei desejo algum de me opor ao que me pareceu uma precaução inofensiva e até certo ponto justificável.

A pedido de Usher, ajudei-o pessoalmente nos preparativos para o sepultamento temporário. Posto o corpo num ataúde, nós ambos, sozinhos, levamo-lo para o seu repouso no nicho onde o colocamos (e que permanecera por tanto tempo fechada que as nossas tochas, quase extintas pela sua atmosfera opressiva, deram-nos pequena oportunidade para investigação) era pequena, úmida e inteiramente privada de luz; ficava a grande profundidade, imediatamente abaixo da parte do edifício em que estava situado o meu próprio quarto de dormir. Esse subterrâneo fora utilizado, em remotas épocas feudais, como cárcere e, em tempos mais próximos, como depósito de pólvora ou alguma outra substância altamente combustível, visto que uma parte do chão e todo o interior de uma longa arcada, através da qual chegamos à câmara, estavam cuidadosamente forrados com cobre. A porta, de ferro maciço, fora também protegida do mesmo modo. O seu peso enorme causava um rangido insolitamente áspero, irritante, quando se movia nos seus gonzos.

Tendo depositado a nossa carga fúnebre sobre uma espécie de mesa, nessa região de horror, afastamos parcialmente a tampa ainda não aparafusada do ataúde, e olhamos para o rosto da morta. Uma notável parecença física entre o irmão e a irmã pela primeira vez feriu então a minha atenção; e Usher, adivinhando talvez os meus pensamentos, murmurou algumas palavras pelas quais soube que a finada e ele tinham sido gêmeos, e que afinidades de uma natureza dificilmente inteligível sempre tinham existido entre ambos. Os nossos olhares, todavia, não se conservaram por muito tempo sobre o cadáver, pois não podíamos contemplá-lo sem pavor. A doença que assim levara ao túmulo aquela mulher em pleno vigor da mocidade deixara, como acontece em todas as moléstias de caráter estritamente cataléptico, a ironia de um leve rubor no seio e no rosto, e esse sorriso tênue que é tão terrível nos lábios da morte. Tornamos a colocar e aparafusamos a tampa, e, depois de fechar a porta de ferro, dirigimo-nos, cansados, para os aposentos um pouco menos lúgubres da parte alta da casa.

E agora, passados alguns dias de grande amargura, uma visível mudança operou-se no aspecto do distúrbio mental do meu amigo. As suas maneiras habituais alteraram-se. As ocupações ordinárias foram descuradas ou esquecidas. Vagava de sala para sala com passos apressados, desiguais, e como que sem destino. A lividez do seu rosto tomara um tom ainda mais cadavérico - mas a luminosidade dos seus olhos tinha-se dissipado inteiramente. A rouquidão ocasional da sua voz não mais se ouvia; e um tremor como que causado por medo atroz habitualmente caracterizava a sua elocução. Havia ocasiões, na verdade, em que eu julgava que a sua mente incessantemente agitada estava em luta com algum segredo opressivo, para cuja divulgação ele procurava a coragem necessária. As vezes, eu era forçado a tudo explicar com os inexplicáveis caprichos da demência, pois o via de olhar perdido e fixo durante longas horas, numa atitude que denotava a mais profunda atenção, como se estivesse escutando algum som imaginário. Não era de admirar que o seu estado me inspirasse terror; que quase me contagiasse. Eu sentia subirem em mim, lenta mas seguramente, as bizarras influências das suas próprias superstições, fantásticas mas também impressionantes. Foi principalmente ao recolher-se um pouco tarde, na noite do sétimo ou oitavo dia depois do encerramento do corpo da Senhora Madeline na câmara, que experimentei todo o poder de tais impressões. O sono parecia evitar a minha cama e as horas passavam num moroso cortejo. Eu lutava por dominar o nervosismo que se apoderara de mim. Procurava fazer-me crer que grande parte, se não a tonalidade das minhas impressões, era devida à influência desconcertaste da mobília austera e triste do quarto; das tapeçarias escuras e estragadas que, tocadas pelo sopro de uma tempestade iminente, mexiam-se caprichosamente nas paredes e roçavam penosamente nos adornos da cama. Os meus esforços, porém, foram infrutíferos. Um invencível tremor gradualmente se apoderou de meu corpo; e, finalmente, instalou-se no meu próprio coração o íncubo do mais absurdo alarme. Fazendo um esforço e com uma arfada, soergui-me sobre o travesseiro e, procurando ver através da intensa escuridão reinante no quarto, pus-me à escuta, levado por uma força instintiva, e ouvi certos sons baixos e indefiníveis que vinham, entre as pausas da tempestade, com longos intervalos, não sei de onde. Dominado por uma intensa sensação de pavor, inexplicável e intolerável, vesti-me depressa (pois compreendi que não dormiria mais naquela noite) e procurei furtar-me ao lamentável estado em que caíra, caminhando rapidamente, para um lado e outro, ao longo do aposento. Fizera poucas voltas, quando leves passadas numa escada próxima feriram a minha atenção. Reconheci-as logo como sendo de Usher. Um instante depois, ele bateu muito de leve na minha porta, e entrou, com uma lâmpada na mão. O seu rosto apresentava, como de costume, uma lividez cadavérica - mas, além disso, havia uma espécie de hilariedade de demência nos seus olhos - e uma histeria evidentemente contida se percebia por todo o seu aspecto. O seu ar me apavorou - mas tudo era preferível à solidão que eu sofrera através de tantas horas, e quase agradeci a sua presença como a uma consolação.

- E você não viu isso? - disse bruscamente, depois de ter olhado em torno em silêncio, durante alguns momentos. - Então você não viu isso? Olhe, venha ver. Assim falando, e depois de proteger cuidadosamente a lâmpada, apressou-se na direção de uma das janelas e escancarou-a para a tempestade.

A fúria impetuosa da rajada invasora quase nos lançou ao chão. Era realmente, uma bela noite de tempestade, singular e bizarra no seu horror e na sua beleza. Um redemoinho evidentemente percorria com toda a sua força a nossa vizinhança, pois havia freqüentes e violentas alterações na direção do vento; e a excessiva densidade das nuvens (que andavam tão baixo que tocavam os torreões do edifício), não impedia que percebêssemos a velocidade com que elas fluíam na distância. Digo que nem mesmo a sua excessiva densidade não impedia que percebêssemos estas coisas - mas não tínhamos um vislumbre sequer da lua ou das estrelas, nem chegava até nós o resplendor do relâmpago. Mas a superfície inferior das enormes massas agitadas de vapor, assim como todas as coisas terrestres situadas imediatamente em torno de nós, brilhavam na claridade anormal de uma exalação gasosa, levemente luminosa e distintamente visível, a qual flutuava no ar e envolvia a casa.

- Você não deve... você não pode estar a contemplar isso! - disse eu, estremecendo, para Usher, puxando-o suavemente, da janela para uma cadeira. - Essas aparências que o espantam são simples fenômenos elétricos não muito raros, e talvez tenham a sua origem fantástica nos miasmas do charco. Vamos fechar essa janela; o ar está demasiado frio e perigoso para a sua constituição. Aqui tem um dos seus romances favoritos. Eu lerei e você escutará: e assim venceremos juntos esta noite terrível.

O velho volume que eu agarrara era o "Mad Trist" de Sir Launcelot Canning; mas eu o chamara livro favorito de Usher mais por gracejo do que a sério; porque, na verdade, havia pouca coisa na sua prolixidade tosca e quase nada imaginosa, que pudesse ter interesse para a espiritualidade e o sublime idealismo do meu amigo. Era, todavia, o único livro imediatamente à mão; e eu alimentava uma vaga esperança de que a excitação que então agitava o hipocondríaco, pudesse encontrar alívio (pois a história dos distúrbios mentais está cheia de anomalias semelhantes), mesmo nos excessos de tolices que eu devia ler. Se eu pudesse julgar pela atitude concentrada de atenção com que ele escutava, ou aparentemente escutava as palavras da narração, poderia congratular-me pelo êxito de minha lembrança.

Eu chegara àquela parte muito conhecida da história, em que Ethelred, o herói do Trist, tendo procurado inutilmente, por meios brandos, penetrar na habitação do eremita, resolve entrar à força. Nesta altura, o texto da narrativa diz:

"E Ethelred, que era um homem valente, e que estava agora ainda mais forte em virtude do generoso vinho que tomara, não esperou mais para parlamentar com o eremita, que, na verdade, era de caráter obstinado e maligno, mas, sentindo a chuva nos ombros, e receando o recrudescimento da tempestade, ergueu a maça e, desferindo golpes sobre golpes, abriu rapidamente um rombo na porta por onde podia entrar a sua manopla; e ora puxando a porta tenazmente, ora batendo com fúria, fez tudo em pedaços, levantando grande barulho da madeira seca, que alarmou e repercutiu por toda a floresta."

Ao terminar esta frase parei e, por um momento, fiquei em silêncio, pois (embora logo percebesse que a minha imaginação excitada me iludira) parecia-me que, de alguma parte muito remota da casa, vinha indistintamente até os meus ouvidos, o que podia ter sido, na sua exata semelhança de caracteres, o eco (sem dúvida um eco sumido, abafado) dos sons que sir Launcelot descrevera havia pouco. Evidentemente, só a coincidência é que me ferira a atenção; porque, entre os estalidos das janelas e os outros ruídos confundidos e comuns da tempestade sempre crescente, o som em si mesmo nada tinha que pudesse ter-me interessado ou perturbado. Continuei a história:

"Mas o bom campeão Ethelred, penetrando agora pela porta, ficou grandemente irritado e confundido por não perceber sinal algum do maligno eremita; mas, em lugar dele, um dragão escamoso e de aspecto prodigioso, com uma língua ígnea, montava guarda diante de um palácio de ouro, com chão de prata; e da parede pendia um brilhante escudo de bronze com esta inscrição:

Quem entrar aqui será vencedor; quem matar o dragão apoderar-se-á do escudo.

"E Ethelred levantou a maça e abateu-a na cabeça do dragão, que caiu diante dele, exalando um sopro pestilento - o seu último alento - com um guincho tão horrível, áspero e penetrante, que Ethelred tapou os ouvidos com as mãos, para fugir àquele som estranho e medonho".

Aqui novamente fiz uma pausa, e agora com uma impressão de desconcertante estupefação - pois não havia dúvida nenhuma de que naquele momento eu efetivamente ouvia (embora me fosse impossível precisar de que direção provinha) um som agudo irritante, prolongado, penetrante como um grito esganiçado, que parecia vir de longe - a reprodução exata daquilo que a minha imaginação concebera com relação ao bramido selvagem do dragão, conforme a descrição do escritor. Impressionado, como sem dúvida me encontrava, pela ocorrência desta segunda e extraordinária coincidência, por mil sensações contraditórias, em que predominavam o pasmo e o terror extremos, ainda conservei suficiente presença de espírito para evitar o agravamento, por contágio, da sensibilidade de sensitiva do meu companheiro. Não duvidava de que ele tivesse reparado nos sons de que falei; e, mesmo, uma estranha alteração se operava, durante os últimos minutos, no seu exterior. De uma posição em face da minha, ele gradualmente torcera a cadeira de modo a ficar com a frente voltada para a porta do quarto; e assim eu podia apenas ver parcialmente as suas feições, percebendo que os seus lábios tremiam como se ele estivesse murmurando qualquer coisa inaudível. A sua cabeça caíra-lhe sobre o peito - eu sabia, porém, que não dormia, porque, pelo seu perfil, podia ver que conservava os olhos rigidamente abertos. Os movimentos do seu corpo me firmavam também nessa conclusão, pois ele oscilava suave, mas constante e uniformemente. Tendo rapidamente observado tudo isso, voltei à narrativa de Sir Launcelot, que continuava como segue:

"E agora o campeão, tendo escapado à terrível fúria do dragão, voltou a sua atenção para o escudo de bronze e pensou na quebra do encanto que pesava sobre ele. Afastou a carcaça para um lado e aproximou-se decididamente, pisando o pavimento de prata do castelo, do lugar onde pendia o escudo; este, porém, não esperou pela sua ação, e caiu aos seus pés, no chão de prata, com um tinido retumbante, ensurdecedor".

Estas últimas sílabas nem bem haviam passado através dos meus lábios e - como se um escudo de bronze tivesse realmente, naquele momento, caído pesadamente num pavimento de prata percebi um ruído distinto, profundo, metálico e estridente, embora aparentemente velado. Completamente desatinado, pus-me de pé num salto; mas os movimentos ritmados de Usher não se alteraram. Precipitei-me para a cadeira em que ele estava sentado. Seus olhos estavam fixamente perdidos no espaço, e em todo o seu rosto havia uma rigidez de pedra. Mas, quando coloquei a minha mão sobre o seu ombro, um forte estremecimento percorreu-lhe todo o corpo, um sorriso doentio apareceu nos seus lábios; e percebi que ele falava com uma voz ininteligível, sumida como um murmúrio, como se ignorasse a minha presença. Inclinando-me sobre ele, consegui finalmente apanhar a medonha significação das suas palavras.

- "Estarei agora ouvindo aquilo? Sim, estou ouvindo e tenho ouvido. Por muito, muito tempo, muitos minutos, muitas horas, muitos dias, tenho ouvido isso; mas não ousava... Oh! piedade para mim, para um miserável! Eu não ousava... Eu não ousava falar! Nós a pusemos viva no túmulo! Eu não dizia então que os meus sentidos estavam aguçados? Agora digo a você que ouvi os seus primeiros débeis movimentos no silencioso ataúde. Eu os ouvi, há muitos, muitos dias; entretanto, não ousei... não ousei falar! E agora... esta noite... Ethelred... Ha! Ha! A destruição da porta do eremita, e o grito de morte do dragão, e o estrondo do escudo... E a abertura do seu ataúde, o ranger dos gonzos da sua prisão, a ressonância das paredes forradas de cobre do subterrâneo! Oh! para onde fugirei? Não irá ela aparecer aqui dentro de um momento? Não se está apressando para censurar a minha intenção? Não estou ouvindo os seus passos lá na escada? Não é isto o terrível e lento pulsar do seu coração? Insensato!" - aqui ele se pôs galvanicamente de pé e gritou estas sílabas, como se fizes-se o esforço do último alento - Insensato! Eu afirmo que ela agora está de pé atrás da porta!

Como se na energia sobre-humana da sua elocução houvesse o poder de um sortilégio, as enormes e antiquadas almofadas, para as quais ele apontava, recuaram vagarosamente, nesse instante, as suas graves bocas de ébano. Era a obra de uma formidável rajada - mas, escancarada a porta, apareceu, de pé, a figura altaneira e amortalhada da Senhora Madeline de Usher. Havia sangue na sua veste branca e vestígios de alguma luta áspera em cada parte do seu corpo emagrecido. Por um momento, ela ficou, trêmula, a vacilar no umbral - depois, com um pequeno grito lamentoso, caiu pesadamente para dentro, sobre o corpo de seu irmão, e, na sua violenta e agora final agonia, o que ela arrastou para o chão foi apenas um cadáver, a vítima dos horrores que ele mesmo previra. Daquele quarto e daquela casa, eu fugi espantado. A tempestade continuava desencadeada, com toda a sua fúria, quando me vi finalmente atravessando o velho caminho pavimentado. De repente, surgiu ao longo do caminho uma luz estranha, e eu me voltei para ver donde poderia ter saído uma claridade tão insólita, pois atrás de mim só havia a mansão com suas sombras. O resplendor vinha de uma lua no ocaso grande e cor de sangue, que agora brilhava vivamente através daquela fenda antes apenas perceptível, da qual eu disse que se estendia desde o telhado do edifício, fazendo ziguezague, até ao alicerce. Enquanto eu olhava, esta fenda rapidamente se alargou - houve uma rajada mais impetuosa da ventania - o globo inteiro do satélite invadiu de repente o campo de minha visão - meu cérebro sofreu um como desfalecimento quando vi que as grossas paredes ruíam, despedaçando-se - houve um longo e tumultuoso estrondo, com mil vozes de água - e a profunda e sombria lagoa aos meus pés fechou-se funebremente por sobre os destroços da "Casa de Usher".


- Fim -

ENCONTRANDO A MALDIÇÃO

Um conto de Celly Borges
Meia-noite

Andreas corria por ruelas molhadas pela impetuosa chuva que caíra pouco mais cedo, e fazia com que todas as casas ao seu redor se parecessem com ruínas mal-assombradas. Sob a luz da lua, os longos e belos cabelos do rapaz, pareciam com uma cascata dourada que voavam de um lado para outro, sem um ritmo certo.

Tentava fugir de algo que desconhecia, mas temia muito.

Parou, exausto, em frente a uma casa de arquitetura muito antiga, rústica. Agora sabia, nada mais o estava perseguindo. Neste momento pode ter certeza de que o que vira, fora obra de sua imaginação.

Repentinamente, o céu voltou a se tornar um negro tão intenso. Negro assim como os olhos da criatura que imaginara – ou realmente vira, as informações estavam confusos em sua mente –, e negro como sentia a alma da mesma criatura.

O único modo de fugir daquela chuva torrencial, que a pouco recomeçara, era pedindo abrigo naquela velha mansão.

Andreas correu ate o abrigo da porta, tentando se proteger com as mãos da água que o encharcava por inteiro. Bateu com a aldrava na imensa porta de entrada, que tinha enormes letras talhadas na mais nobre madeira, talvez as iniciais do proprietário. Um tempo depois a porta, entre rangidos muito altos, começou a ser lentamente aberta. Ele entrou, procurando alguém, olhando para todos os lados, de uma forma rápida e amedrontada.

– O que o senhor deseja?

O rapaz levou um grande susto, não reparara no homem atrás da porta, um senhor muito alto e magro, com cabelos pretos, muito bem cuidados, penteados para trás, carregado de gel. Usava um terno bastante alinhado.

A voz daquele homem era grave e sombria.

– Eu preciso de algum lugar para esperar até que esta chuva passe. Acaso posso ficar por aqui, por este tempo?

O homem foi até Andreas, que estava assustado.

– Devo perguntar o meu patrão, senhor. Espere na sala, por favor, não demorarei com a resposta –, ele fez uma referência um tanto quanto exagerada, e retirou-se, subindo um grande lance de escadas.

Andreas foi até a sala. Uma enorme sala, que era toda decorada com objetos medievais. Das paredes pendiam espadas, lanças, brasões, tapeçarias e até mesmo um arco e flechas, tudo muito antigo. A casa toda era como um castelo.

Examinava todos objetos sobre lareira recém apagada, com curiosidade, quando o dono da casa entrou no aposento. Andreas o olhou rápido, e o viu com aqueles mesmos olhos negros. Respirou fundo. O coração acelerando mais a cada minuto que se passava sem aquele senhor dizer uma única palavra, apenas analisando Andreas.

– Então você pretende ficar aqui? – perguntou o senhor de cabelos brancos, vestido com um belo roupão de seda vermelha, segurando um charuto entre os dedos em uma das velhas mãos enrugadas e nodosas, continuava avaliando o rapaz.

Andreas concordou somente com um aceno de cabeça, mesmo sem ter certeza de que realmente desejava permanecer naquele estranho e sombrio lugar.

– Tudo bem, então – disse o velho. – Mas acredito que esta chuva não passará tão rápido – ele olhou por uma das grandes vidraças da sala, onde a água batia com incrível violência. – Então penso que deverá estender-se por aqui esta noite.

Andreas não gostou da idéia. Respirou fundo mais uma vez.

– Não teria apenas como eu chamar um táxi? – perguntou já procurando um aparelho telefônico em algum canto da sala. – Eu não desejo incomoda-lo...

– Aqui não há telefone – interrompeu o mordomo.

Andreas olhou-o rápido.

– James – chamou o dono da casa, parecendo irritado –, mostre a este jovem onde ficam os quartos de hóspedes.

“E por favor, dê o melhor de nossos aposentos ao cavalheiro, aqui”. Ele levou o charuto à boca, com aqueles olhinhos ainda fitando Andreas.

James, o mordomo, levou Andreas por corredores imensos e também muito escuros, que eram iluminados apenas por alguns poucos archotes que pendiam das paredes, fazendo com que as sombras improvisassem uma terrível dança.

Andreas sentia muito medo.

– Aqui será, por esta noite, seu quarto, senhor. E, se acaso precisar de algo, não hesite em chamar-me – o mordomo foi se retirando com outra reverência exagerada, Andreas esperou até que ele sumisse por entre as sombras do mesmo lugar por onde vieram.

Aquele quarto era tão mal iluminado quanto o corredor. Andreas entrou e fechou a porta exatamente quando um raio cortou o céu lá fora, clareando todo o aposento, notava-se agora a decoração antiga, no mesmo estilo ao restante da casa. O coração do rapaz disparou.

Ele começou a sentir algo muito forte, ruim. Não entendia direito. Parecia que sua cabeça estava prestes a explodir, a apertou entre as mãos. Estava tendo um pressentimento estranhíssimo.

Andreas caiu no chão.

Alguns minutos mais tarde, ele corria por aqueles compridos corredores de luzes bruxuleantes, se chocando várias vezes contra as paredes, tentando achar a saída.

Encontrou a grande sala. E lá estava o dono da casa, em pé, com um olhar sombrio, parado ao lado da lareira, que agora estava acesa, e esta era a única fonte de luz do cômodo. Andreas o olhou sentindo medo. Respirou profundamente mais uma vez.

Um tempo depois, James entrou na sala, carregando uma bandeja com um bule e uma xícara de prata. Andreas estava no chão, caído, em meio a uma pequena poça de sangue.

O mordomo ficou pálido e imóvel por um instante, derrubou a bandeja, pulou para cima de Andreas, que revidou, fincando suas enormes e brancas presas no pescoço de James, assim como fizera com o dono da casa.

Andreas agora corria pelas ruas molhadas pela chuva que caíra mais cedo, tentando se livrar daquela maldição.


O MISTÉRIO DO HOMEM DE PRETO

Autor: Luiz Lanzieri
Na delegacia, um homem todo sujo e com os pulsos machucados chega correndo desesperado, procurando por ajuda, ele começa a se exaltar e alguns policiais o levam para um canto pra saber o que se passa, ele começa a falar e senta-se numa cadeira, ele diz:

_Meu nome é Ross, e o que venho a dizer é de extrema importância.

_Pare de delongas e comece logo a dizer o que sabe! Diz um policial.

_Tudo bem, Assim que os Smith foram embora esse homem chegou, se mudou para lá, mas ninguém jamais o via, ele vivia em sua casa trancafiado e parecia ser altamente anti-social, porém, eu sei o que ele É, SÓ EU SEI O QUE ELE FAZ, EU SEI O QUE ELE FEZ COM OS SMITH!!!!

_O delegado, percebendo a exaltação de um homem que ele logo reconhece como Ross, seu parceiro de pesca, vai lá saber o que está acontecendo:

_Que baderna é essa Ross? Qual o motivo do escândalo?

_Desculpe delegado, estou falando sobre aquele homem que chegou à nossa cidade, eu queria fazer uma denúncia!!!

_Ótimo, pois então vá logo, também quero saber o que há de tãosuspeito com esse cara.

_Como eu ia dizendo, estava realizando meus afazeres enquanto minha mulher estava com meus filhos na casa de sua mãe, foi aí que ele bateu à minha porta.

_Que estranho, os boatos são que ele só vive isolado, que horas eram? Disse o delegado.

_Eram mais ou menos 04h30min da tarde, estava para escurecer.

Assim, ele continuou dizendo que o tal homem estava dizendo que em sua casa um cano havia furado e eu me ofereci para ajudar, já que já tinha sido encanador por um tempo, e completou:

_Assim que entrei em sua casa percebi um cheiro estranho e depois de um tempinho andando lá um pano encardido veio ao meu rosto e eu não lembro de mais nada, acho que ele me apagou com clorofórmio.

_Continue! O que aconteceu? Disseram os policiais, sobretudo o delegado.

_Acordei depois, com as mãos amarradas a um cano de ferro na parede.

Percebi que o homem estava com um avental branco sujo de sangue e um cutelo na mão, quando abriu sua geladeira percebi que lá haviam vários pedaços de carne, e ao reparar melhor percebi uma cabeça, que era da Srª. Smith!

Desesperado, perguntei a ele o que ele queria e o que ele havia feito com a família Smith, ele olhou para mim com uma cara muito pálida e com olhos brilhantes, e de maneira muito fria respondeu:

_Pois é, eles não queriam me vender a casa, e como na cidade de onde vim eles não aceitam muito Antropofagia eu usei eles para servirem de uma causa maior, assim como você servirá, para matar minha fome.

Enquanto falava e retirou o seu avental e limpou suas mãos, veio para perto de mim e começou a dar uma risadinha forçada, colocou um toca discos para funcionar e foi tomar um banho eu acho.
_Com o pouco que restava de minha força consegui derrubar o tocadiscos. Quando o disco de vinil caiu, se quebrou todo e um pedaço caiu perto de minha perna. Consegui pegar e cortei a corda; com o barulho que não foi muito alto o homem deve ter se alertado e já devia estar se enxugando. Desesperadamente eu corri até a porta e tentei abrir, estava trancada, peguei a cadeira e quebrei o vidro da Janela. Saí por ali mesmo e vim correndo até chegar aqui.

O delegado olhou para mim com uma cara de incrédulo e disse:

_Ross, eu também não vou com a cara desse cara, nem sei como ele é direito, mas olhe só você está confuso, faça o seguinte, vá para casa, tome um banho e durma um pouco, se amanhã você tiver certeza do que está falando eu vou dar uma olhada.

_Ta bom, eu acho que foi só um pesadelo mesmo.
No outro dia de manhã, no Jornal local havia uma foto do rosto de Ross na sessão de desaparecidos, no anúncio dizia que a última vez que fora visto estava saindo da delegacia.

terça-feira, julho 24, 2007

A Volta dos Mortos-Vivos!

Sim estamos vivos! E como disse meu comapnheiro Henry Evaristo viemos pra ficar! Talvez ainda estejamos um pouco devagar nas postagens, mas ainda sim materemos esse espaço aberto e mais vivo do que nunca
A todos que passarem por aqui meu muito obrigado e voltem sempre, pois logo teremos cada vez mais novidades!

Se você tiver algum texto e quiser dar sua contribuição, envie para o e-mail do Henry ou para o meu lhf_87@hotmail.com

Linx, Membro fundador da Irmandade das Sombras

O QUADRO

Autor: Linx
Revisão: Paulo Soriano

Há algum tempo tudo começou. Sim, C. era muito dedicado a suas obras, tinha certa veemência quando pintava, quase que mergulhava em seus quadros por horas a fio, sem sequer parar para comer ou mesmo beber um simples copo de água, trancado em seu ateliê, uma saleta no fim do longo corredor cheio de suas telas enfeitando as longas paredes forradas com um papel de cor escarlate vibrante. Mas, mesmo em seus momentos de maior dedicação, ele sempre separava um tempinho, lá pela hora do jantar, para ficar com sua esposa, às vezes mesmo que sentando na frente do sofá ao som de sua velha vitrola, ouvindo óperas quase que esquecidas, tão antigas quanto aquele grande casarão onde viviam no meio do nada. Mas nada disso era motivo de queixa de sua esposa, que a ele dedicava um amor tão imenso quanto seu próprio coração. Para ela, ele nunca deixou de ser amoroso e atencioso, nunca lhe negou uma noite calorosa de amor, nem mesmo um colo nos momentos em que não estava metido no seu mundo.
Mas agora as coisas ficavam cada dia piores; num certo dia, C. entrou na sala com uma grande tela, carregada por cinco homens. Ele tinha um brilho diferente nos olhos enquanto olhava aquela tela entrando no hall de sua casa. Sua mulher, que ainda dormia, acordou e desceu a passadas largas a longa escada até parar ao lado do seu marido, que mal lhe deu atenção e provavelmente nem a vira entrar.
- Amor... ela tentava sorrir. Que tela enorme!
-É... ele nem mesmo desviou seu olhar da grande tela em branco que entrava.
- O que pretende pintar ai? - Disse ela embaraçando suas mãos.
Ele voltou seu olhar por um leve momento para sua esposa meio encabulada ao seu lado. Mas em seus olhos ela não vira o tom de alegria, misto com um amor sereno que ele dirigia a ela em seus olhares, mesmo nos momentos mais difíceis. Agora vinha carregado de uma frieza e de desdém que chegou a arrepiá-la.
- Não sei ainda. Sinto-me inspirado, sinto que minhas mãos estão para conceber uma grande obra.
- Ah! entendi. Que bom, amor. - Ela lhe tocou de leve o ombro, sendo esquivada depois de um leve segundo
-Bem, eu vou acompanha-los até meu ateliê. Disse ele se virando e seguindo o grupo de homens. Vá até o jardim dar uma caminhada. - Disse ele, acenando a ela de costas.
A mulher ficou ali parada, vendo seu marido seguir aqueles homens. Ela ainda pôde ver, ao seu corpo cruzar o hall e entrar no longo corredor, o rosto dele novamente brilhante, repleto de admiração à sua futura obra.
Ela, então, tentando ignorar o episódio de repulsa do marido, se dirigiu ao jardim; talvez colher umas flores e enfeitar um pouco aquela casa, que muitas vezes lhe parecia tão sombria, lhe alegrasse um pouco.
Mas nem mesmo um jardim todo de flores, que ela tanto amava, a alegraria a partir daquele dia, pois a partir daquele dia amargo, seu marido mergulhou inteiramente em seu mundo e ela mergulhou inteiramente num mundo de fel. Ele mal saiu de sua saleta, ficou até um dia todo sem sair e nesses raros momentos em que saía, ele mal olhava a esposa nos olhos. Ele ficava cada dia mais sombrio, era como se a obra lhe consumisse o espírito a cada dia. Seus olhos, antes brilhantes, mesmo que às vezes vagos e foscos, agora tornaram-se escuros, fundos em seu rosto magro e abatido. Suas poucas palavras eram ásperas e a cada dia que se passava, nem mesmo suas ríspidas respostas era ouvidas naquela casa. Sua esposa estava ficando preocupada com a saúde de seu marido, mas não queria lhe falar, não queria lhe perturbar, sabia que era uma fase, sabia que aquilo fazia parte de sua nova criação.
Mas suas certezas começaram a desmoronar quando ele ficou três dias preso em seu ateliê, sem mesmo sair para tomar um ar.
No fim do terceiro dia, eram cerca de onze da noite quando ele saiu, passando rapidamente por ela e indo até a cozinha. Tomou da geladeira um jarro de vinho e dois pães, os botou numa cesta e seguiu até sua sala novamente. Nesse momento, sua esposa não se conteve, sua preocupação se misturava agora com um certo rancor. Ela o puxou pelo ombro e o virou com certo brutalidade, pondo nele toda força que tinha.
-O que está acontecendo C.?
- Nada! ele gritou e a empurrou.
-Como nada?! Você se trancou nessa maldita sala por quase três dias! Me diz o que está acontecendo com você?
-Já te disse que nada. Pare de me perturbar e me deixe trabalhar! - Disse ele, seguindo até sua saleta novamente. -Volte aqui, C.! - Ela gritou enquanto se levantava. C. volte aqui!
Ela correu o máximo que pôde, mas apenas bateu o rosto na porta. Tentou ainda dar umas duas batidas na porta, mas logo cansou, escorregado devagar pela madeira envernizada, ficando ali um tempo até voltar ao sofá.
Depois desse dia, seu marido saiu raras vezes novamente, mas nessas raras vezes ele saía no meio da madrugada, longe dos olhos de sua mulher, pegava o que queria e se trancava novamente. Aquilo a estava deixando cada dia mais insana. Ela não mais dormia direito e ficava horas a fio batendo na porta, sem ao menos ouvir uma simples respiração dele. Sua devoção e amor começavam a se transformar em um ódio louco, um rancor desigual, que ninguém jamais acreditaria que ela conseguisse sentir por seu antes querido marido.
*****
A lareira estava acesa e, à sua frente, ela estava parada, olhando as labaredas dançando, brotando em meio à madeira velha. Vestia um trapo qualquer e tomava um copo de rum, hábito que agora era freqüente. Seu rosto estava pálido, amarelado, ela estava fraca, havia perdido sua energia e vontade de viver.
-Ai...- Exclamou ela , ao sentir que algo estranho lhe penetrou o ouvido.
O barulho soava como um tiro dentro de sua cabeça mareante pela ressaca, mas logo ela consegui identificar como sendo o barulho da porta do ateliê dele se abrindo. Ele ficara a semana toda trancado ali, sem sair nem mesmo de madrugada. Longos passos começaram a ser ouvidos ecoando do longo corredor. Sua silhueta brotou então do meio das sombras feitas pelas labaredas da lareira, passado direto por ela e indo até o cozinha. Aquela rejeição fez explodir de dentro dela todo ódio que ela começou a guardar desde que ele a jogou naquele ladrilho gelado, depois de sua tentativa de lhe fazer um simples gesto de carinho. Como que alimentada por essa fúria, ela pulou do sofá, correndo até a cozinha, onde ele estava. Seus olhos fitaram-no sinistramente, como um bicho raivoso.
-Por que me abandonou? - Ela novamente reprimiu seu ódio e tentou, lembrando-se de seu amor por ele, resgatar tudo que perdera.
-Me deixe... -Sou sua esposa, C.! - Gritou ela, descarregando sua fúria. - Você está trancado ali há dias e, se sai, vaga como uma alma penada pela noite.- Lágrimas correram pelos seus olhos. - Você não me toca mais, nem mesmo me olha.
-Já disse que quero ficar em paz!
-Olhe para mim! - Disse ela, agarrando-a.
-Me solte, sua vadia! - Disse ele, empurrando-a no chão.
Ele tomou o que vinha pegar e se virou, sendo então agarrado por um dos pés pela mulher, que estava no chão, estendida. Com um outro pé, ele lhe chutou o rosto e pulou para o lado, deixando-a rolar, batendo seca na parede. Ele ficou um pouco ali a olhando, tomou depressa os pães e duas garrafas de vinho e virou-se em direção ao longo corredor, caminhando lentamente até sua sala, com certo tom triunfante esboçado em seu sorriso. Suas mãos tocaram a maçaneta, mas logo escorregaram pelo metal. Ele se virou, vendo-a cravando uma faca em suas costas.
-Porque me fez fazer isso? - Disse ela chorosa.
-Sua...
Ele tentou lhe dizer algo, mas ela lhe deu outro golpe, que o fez cair no chão, estendendo-o diante do longo corredor. Ela se afastou, subiu em cima do corpo, que ainda respirava e lhe desferiu mais seis golpes, caindo sem forças em cima dele. Ficou ali vacilante por um longo minuto, até se levantar e pôr seus olhos no corpo sem vida, estendido pelo corredor.
-O que eu fiz? - Disse ela, desesperada.- Deus, o que eu fiz?!
Suas mãos, cobertas de sangue, cobriram o rosto cheio de lágrimas, caindo de joelhos.
-O quadro! Sim, esse maldito quadro fez tudo isso. - Seu rosto novamente estampava fúria. - Ele fez meu C. ficar assim e me fez fazer isso! Amaldiçoado seja!
Com o pouco de forças que ainda lhe restava, ela se levantou lentamente e cambaleou até a porta envernizada que lacrava o ateliê. Uma fraca luz invadiu o quarto cheio de tintas e telas inacabadas. Seus olhos correram o pequeno quarto até ela poder ver, no meio de tudo, a grande tela. Suas pernas então perderam as forças, fazendo-a cair de joelhos. Seus olhos, antes em fúria, agora estavam cobertos de horror; diante dela, cobrindo uma parede ao fundo, estava uma tela pintada a óleo. Nela, o longo corredor escarlate, um corpo estendido numa poça de sangue e mais a frente uma mulher caída de joelhos...