quinta-feira, junho 05, 2008

O TEMPLO DE HAZAAD


O TEMPLO DE HAZAAD


Por: Henry Evaristo



Sempre me senti atraído pelo insólito. Quanto jovem despendia horas a fio absorto na tarefa de garimpar nas bibliotecas de meus familiares todos os livros que abordassem temas assombrosos e fantásticos.


Tudo naquele universo me interessava profundamente e meus esforços para tocá-lo, de qualquer forma, tornaram-se cada vez mais veementes com o passar dos anos.


A herança recebida de um tio tirou-me da miséria em que a morte de meus genitores me deixara e com trinta e cinco anos eu soube, pela primeira vez, o que era a liberdade financeira quase sem limites. Minha ânsia pelo inusitado que existe nas entrelinhas do mundo, podada durante os últimos anos pelas dificuldades financeiras e pelo trabalho que tinha para manter a casa apenas com meus ganhos com aulas particulares, cresceu desmesurada e diretamente proporcional à fortuna que, de repente, eu vira depositada em minha conta no banco. Eu, como único sobrinho do velho Santmartin, herdara-lhe a fortuna.


No início limitei-me a importar tudo o que eu sempre sonhara em livros e artefatos relativos ao mundo da magia, do ocultismo, da demonologia e da bruxaria. Tudo o que podia encontrar eu imediatamente adquiria. Enchi a casa com volumes antigos e raros, e outros materiais com os quais um verdadeiro conhecedor do assunto poderia realizar qualquer tipo de ritual.


Com o avançar dos dias tornei-me ainda mais recluso do que de costume e raras eram às vezes em que os outros me avistavam pálido a vagar pelas ruas da vizinhança. Até mesmo as visitas ao meu estabelecimento preferido, na avenida leste, ficaram restritas a no máximo um domingo por mês. Passei a entender que para manter-me puro como mandavam as lições dos tomos dos mestres eu deveria ser capaz de produzir, num ambiente adequado às especificações dos ensinamentos, todos os meus alimentos. Tornei-me ferrenho vegetariano e a higiene absoluta para mim passou a ser uma obsessão. Chegava a tomar oito banhos por dia até mesmo nas temperaturas abaixo de zero de nosso inverno. Lia por seis e às vezes até oito horas ininterruptas. Nos intervalos, quando os olhos ardiam e ficavam vermelhos, corria ao laboratório que construí para tentar por em prática a teoria que aprendera. Depois comia plantas e ervas exóticas importadas do oriente e cultivadas, com todas as adaptações climáticas necessárias, em uma estufa que erigi no quintal. À noite o telhado da mansão era frequentemente visitado por minha figura esguia e mortiça, pois eu havia lido no APOCALIPSE DAS CRIATURAS, o terrível grimório do turco Hazaad — o qual eu adotara como meu principal objeto de estudo — que a luz da lua era energética para o mago e que este poderia ler no brilho das estrelas o destino de todos os homens.


Dois anos se passaram até que meus estudos me apontaram outro caminho. As leituras dos antigos livros e mapas, e peças raras trazidas de países distantes, me levaram à conclusão de que nada mais profundo eu poderia aprender e conquistar a partir do interior das paredes de minha própria casa. Era preciso aventurar, ir mais fundo na busca pelas informações; para penetrar nos confins absolutos do indizível, eu precisava viajar.


Assim conheceu minha presença alta e magra a cidade de Istambul no verão de 1937. Lá deixei que toda a força dos ensinamentos do mestre Hazaad tomasse conta e já não agia mais em respeito a meu corpo e minha mente. Acreditava que todos os meus passos eram guiados para algum desígnio oculto por uma força consciente que estava, para além da minha própria ânsia em seguir em frente, me orientando para um destino mágico. Em minha inocência humana, cria piamente que poderia desvendar e vislumbrar mistérios nunca antes conhecidos ou vistos por nenhum outro intelecto desta terra.


Minhas buscas em velhas bibliotecas e sítios históricos levaram-me às ruínas do lugar habitado pelo mestre turco no século IX. Era, naquele tempo, um espaço afastado das zonas urbanas. Isolado por mais de trezentos quilômetros que avançavam para dentro de uma vasta região desértica. Quando me vi sozinho em meio às colunas do que no passado deveria ter sido um imenso templo goético(1), e enquanto ainda podia ver a silhueta recortada contra o poente do homerm esquálido que me trouxera ali em seus camelos cansados, senti que finalmente estava diante de algo profundo e do qual já não podia me esquivar de qualquer forma. Era o espectro obscuro que eu tanto perseguira que se apresentava para mim por entre aquelas ruínas ancestrais.


No entanto, a despeito de toda a exaltação e curiosidade, não foi sem uma pontada de relutância no coração que arrisquei os primeiros passos no interior do terreno acidentado. As imensas colunas rochosas amontoavam-se de uma forma inexplicavelmente incômoda para mim e os ângulos em que se haviam retorcido as gigantescas barras de aço que sustentavam um portão, como que meio viradas para o lado de fora, causavam-me um terror que ainda naquele momento era totalmente injustificado.


Por muitas horas vaguei por entre os resquícios daquele sítio antiqüíssimo e deixei-me levar pelos ares de outras eras. Conforme avançava pelos restos de largos corredores e galerias gigantescas não podia deixar de imaginar o tipo de conhecimento que um dia fora produzido no interior daquelas paredes. Imagens de épocas passadas se formavam em minha mente a todo instante e eu quase podia testemunhar os milhares de homens e mulheres miseráveis que corriam à suas portas em busca de algum tipo de solução em suas vidas ou em fuga das lâminas intolerantes dos maometanos(2). De repente senti-me rodeado pela própria história da magia quando a natureza era um bem comum e controlável; quando a riqueza a partir do nada era um sonho possível e quando todo o mal podia ser feito ou desfeito com o auxílio dos gênios. De alguma forma maravilhosa a luminosidade solar que penetrava por entre as frestas nas rochas formava barras translúcidas dançantes em frente a meus olhos e, em relances breves, eu podia até mesmo vislumbrar pequenas formas divergentes do vento que se contorciam na luz.


“Eu os vejo!” Gritei para o vazio das paredes destruídas. “Os demônios da poeira!”.


E aquelas coisas estavam em toda parte. Dos recantos mais próximos e mais distantes, e até mesmo do fundo da terra escura, pareciam rir para mim, e me chamar. Era a jornada de minha vida; onde me seriam revelados os arcanos mais secretos. A cultura banida da terra a ferro e fogo pelo poder secular cristão; o conhecimento dos antigos que foi extirpado em toda a sua plenitude do inconsciente do mundo pelo império da razão e pelas amargas religiões dos homens.


Largar-me inteiramente ao poder daqueles pequenos seres para que eles me conduzissem ao meu destino era o que eu queria mas, ao mesmo tempo, crescia ainda mais em mim um sentimento de alarme ante a tudo o que me cercava. Os espaços escuros por entre as ruínas titânicas passavam a representar perigo crescente em meu imaginário e não foi apenas uma vez, antes do fim, que achei ter visto um brilho anormal que me espreitava como os olhos de algum animal raivoso em meio às trevas.


Depois, quando tornei a procurar os seres da luz, encontrei-os parados e amontoados a um canto bem iluminado. Não havia mais em seus rostinhos miúdos e afogueados o sorriso de outrora e muitos olhavam assustados para algum ponto acima de minha cabeça. Foi um movimento de pequenas pedras rolando que fez com que eu me voltasse para trás. Não vi mais nenhum sinal de movimento naquele interior e a escuridão, que antes se mantinha escondida e tímida, a tudo inundou com um ardor avassalador.


De repente me vi só, em pé, em frente a um pavor gigantesco e escuro que me fitava do alto de um paredão com muitos metros de altura. E a cada gesto seu, a claridade solar se curvava e minguava até desaparecer por completo.


Não era um homem em absoluto. Antes era um resumo de homem; e do lugar onde deveria estar sua cabeça pendia para fora, projetando-se no ar, um imenso apêndice esverdeado cuja extremidade trazia um par de olhos amarelados que me fitavam horrivelmente graves. Seu tórax era forte, viril, como o de alguma potestade mitológica e abaixo da cintura, entre um par de pernas vigorosas que mais pareciam pilares de mármore escuro, balouçava a um estranho vento simum(3) um imenso falo, como uma grande cauda frontal, que se comportava como serpente ensandecida por um ódio tal que tentava, vez por outra, atacar as pernas da aparição que a continha com suas tremendas mãos musculosas.


Era ele, tenho certeza! Era Hazaad, o mestre dos magos negros do oriente que me fitava do interior daquela forma medonha. Sei disso porque ouvi seus gemidos dentro de minha cabeça; ecoando como o grito nefasto que deve subir dos intestinos do inferno para aqueles que o procuram. E senti que suas mãos, aquelas mãos que antes tentavam conter a coisa gotejante que lutava por sua carne, agora se insinuavam dentro de mim, acariciando asquerosamente meus órgãos mais vitais, tentando sair e formando erupções em minha pele.


Ali, naquele templo amaldiçoado perdi toda a minha convicção. No lugar onde o mal permaneceu aprisionado até aqueles dias eu falhei como mago. Cai de joelhos e pedi clemência e este meu ato provocou risadinhas histéricas por todo o recinto. Ainda pude ver os pequenos demônios da poeira rastejando de volta para seus buracos infectos agora com aparências bem diferentes daquelas com as quais me receberam. Como bandos de insetos imundos, se esconderam novamente em suas tocas decepcionados ao entenderem que não era eu, ainda, aquele que levaria o poder de seu mestre para o mundo exterior.


Depois tudo se acalmou e apenas o uivar do vento quente do deserto fustigando as velhas ruínas chegou a meus ouvidos. Tudo estava como era antes e aquela quietude oprimiu meu coração de tal maneira que saí correndo do velho templo sem nem mesmo pensar na direção que tomaria.


Foi um grupo de nômades que me encontrou vagando desorientado pelas areias, à noite, já quase a morrer de frio. É a eles que devo minha vida. A eles e a meu instinto humano de preservação. Mas receio que coisas muito mais sérias estiveram em jogo naquele dia no templo de Hazaad e, se não fui eu seu novo discípulo no mundo dos homens para pregar e espalhar seu mal sobre esta terra, seu velho e hediondo templo ainda está lá, solitário em meio à vastidão desértica, esperando por outro estudioso mais temerário que aceite ser tocado daquela forma pelas mãos asquerosas do mal absoluto.



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(1) - Goético: referente à Goécia, termo com o qual se desginava a magia negra na Grécia antiga e durante a idade média.


(2) - Maometanos - Como eram conhecidos os seguidores de Maomé, os muçulmanos, nos textos mais antigos sobre o Islamismo.


(3) - Vento simum - vento extremamente forte, mais comum no deserto do Saara, que provoca enormes tempestades de areia.

Samantha




Um dos meus contos favoritos...



Dedico esse conto a Samantha, cujo nome inspirou esse conto



— Oi!
A voz angelical de Samantha penetrou pelos corredores até a cozinha onde seu tio bebia um copo de uísque vagabundo sem gelo.
— Entre meu bem, estou na cozinha
Samantha era uma menina de 16 anos, mas com certeza podia se passar por 18 ou talvez 20 se quisesse, se não fosse claro por sua voz doce de menina. Isso talvez fosse o que mais atormentasse e excitasse seu tio que tinha por ela um desejo quase incontrolável.
Ao adentrar no recinto onde estava seu tio, ela já pulou em cima dele lhe dando um abraço apertado, enquanto sue tio tentava não demonstrar sua ereção.
— Vim te ver titio!
— Nossa! Estava mais que desconcertado. Que bom!
— Vim em má hora?
— Claro que não meu amor, claro que não. Ele se levantava rápido, enquanto ela descia de seu colo. E então quer alguma coisa?
— Sim!
— Água ou suco?
— Um beijo. Sua voz era recheada de desejo
— O que? Ele tremia
— Um beijo ué.
— Um beijo Samantha... Disse ele vermelho de vergonha de seus próprios pensamentos.
— Vai anda!
— Bem... Ele a beija na testa. Pronto então
— Não se faz de bobo. Ela se aproxima. Aqui. Ela aponta a boca. Eu quero aqui...
— Samantha!
O tio recua assustado. Anda alguns passos para trás, caindo depois de algumas passadas na parede dos fundos. Sua cabeça parece girar e ele tem vontade de gritar. A situação parece tê-lo feito entrar num mundo surreal, cujas regras ele desconhece
— Assustado? Diz ela com a cabeça inclinada o olhando
— O que você tem? Diz ele depois de um curto silêncio
— Eu? Porque? Eu estou bem. Só quero beijar seus lábios, só isso titio. Ele sente certo sarcasmo em meio as palavras frívolas da garota
— Samantha ouça o que diz! Ele já não sabe o que dizer e parece que seu desejo aumenta a cada palavra e ele sente o impulso bestial de agarra-la
— Estou ouvindo e a mim soa normal. Uma menina que deseja um beijo e quem sabe algo mais... Ela enrola o cabelo, seus olhos estão repletos de luxúria
— Samantha pelo amor de Deus. Suas mãos cobrem a cabeça abaixa agora. Ele não quer olha-la e agora somente deseja que sua mente apague a imagem de sua sobrinha nua
Samantha está parada diante do tio sorrindo, em um silêncio atormentador. O tio parece fazer uma prece em voz baixa, esperando que quando abrir os olhos tudo tenha se resolvido. Um longo silêncio, tão longo que o tio não mais agüenta ficar de olhos fechados
— Samantha... Ele abre os olhos devagar, jogando seu corpo contra a parede e fechando os olhos com força ao ver a visão de sua sobrinha nua a sua frente
— Que foi titio não gostou?
— Para samantha! Gritou seu tio desesperado
— Parar com o que? Eu nem comecei
O tio se pressionava contra a parede, abrindo os olhos esporadicamente. Samantha, com um olhar luxurioso se aproximava devagar, cantado uma antiga canção de roda.
Seu tio então abre os olhos e estanca a imagem de Samantha parada a sua frente. Ela então se abaixa e beija de leve os lábios do tio, deitando no chão em seguida.
— Vem titio. Seus dedos corriam o próprio corpo
As mãos de Samantha pegavam nas mãos do tio e as levavam ao seu corpo. Seu tio tentava resistir, mas o impulso era muito forte. Ele desejou aquela garota por muito tempo e agora ele a teria, aquilo era quase irresistível. Ele tinha sonhado com aquela cena durante muitas noites, desejando vê-la assim, deitando o chamando de titio...
— Vem titio, vem...
— Menina safada!
Seu tio joga-se em cima dela tirando as calças com fúria. seus lábios encontram os dela, beijando-a furioso. Os gritos e gemidos podiam ser ouvidos de longe, enquanto os dois transavam furiosos no chão da cozinha.
Num suspiro final o corpo do tio cai por cima de sua sobrinha exausto.
— Foi bom titio? Diz ela sarcástica
— Meu Deus... Ele balbucia arrependido. O que eu fiz? Como pude?
— Ai titio para de ser bobo. Diz ela saindo debaixo dele. Diz como se também não quisesse
— Do que você está falando? Ele começa a se assustar com o cinismo da sobrinha
— Você sempre me quis, me desejou com todas as suas forças, ou não?
— Eu...
— Não negue, você não pode, ou pode? Ela fala com uma voz cada vez mais sarcástica
— Não... Ele balbucia vencido
— Até fez um pacto com o diabo
— Do que você está falando? Ele recua assustado
— Gosta de se fazer de bobo né? Sua voz agora é mais arrogante e com um tom furiosos. Sabe do que eu falo
— Não, não sei! Ele grita assustado, cada vez mais desesperado com aquilo
— Ontem seu desgraçado! Deixa de se fazer de idiota! Ela agora grita, cada vez mais alto e cheia de ódio, num tom de quem cobra uma promessa
— Eu não fiz nada! ele grita e se levanta, suspendendo sua roupa e se cobrindo desesperadamente rápido
— Filho da puta! Covarde! Você me prometeu a alma em troca de uma transa com sua sobrinha! Sua voz parece ter ficado mais grave e mais furiosa, seu rosto se transfigura num semblante sombrio horrendo e tétrico
— Para Samantha! O que está fazendo! Para agora, eu to mandando! Seus gritos são vacilantes e o medo começa a lhe congelar o sangue nas veias
— Gritou para todos ouvirem. Gritou feito um louco! “Eu quero possuir minha sobrinha e só o que eu quero, depois o diabo pode até ficar com minha alma imunda, eu não ligo, dou-lhe a alma em troca de uma transa...”
— Com minha sobrinha... Completou o tio caindo no chão atônito.
— Isso, muito bem. Ela bate palmas, agora já de pé e vestida. Sua voz já não é mais a de Samantha e seu rosto está transfigurado numa figura que lembra somente o rosto angelical de sua sobrinha.
— Não...
— Bem meu caro te dei o que queria, agora me dê o que eu quero. Disse ela calma e serena
— Não, eu não quis...
— Agora já é tarde. Devia ter mais cuidado com o que promete
A voz da sobrinha ecoa pela sala. Seu tio então sente algo vindo dos pés, um frio insuportável, que logo toma conta de todo seu corpo. Sua respiração fica difícil e sua visão começa a embaçar. Ele luta para manter seus olhos abertos, focando-se na imagem de sua sobrinha que aos poucos começa a se transformar na figura de um homem de terno branco, que o olha sorrindo. Seu corpo então desfalece e seus olhos não mais se abrem
— Seja bem vindo. Diz ele sarcástico
A todos que passarem por aqui: A Irmandade das Sombras ainda Vive e creia; Você ainda vai Ouvir Falar Muito nela!!!



LINX

domingo, junho 01, 2008

OLEO DE CÃO

Por Ambrose Bierce

Tradução: José Jaeger


Chamo-me Boffer Bings. Nasci de pais honestos, malgrado muito pobres. Meu pai era fabricante de óleo de cão, e minha mãe tinha, ao pé da igreja da vila, um pequeno gabinete, onde eliminava bebês indesejados. Já na minha infância aprendi os processos da indústria. Não apenas ajudava o meu pai procurando os cães para seu caldeirão, como também minha mãe me encarregava freqüentemente da missão de me desfazer dos despojos de seu trabalho no gabinete. Para me desincumbir desse mister, às vezes precisei de toda minha natural inteligência, posto que todos os agentes da lei da vizinhança se opunham aos negócios de minha mãe. O assunto não tinha injunções políticas, já que os agentes não haviam sido eleitos pela oposição: simplesmente faziam-no por fazer.
Naturalmente, o trabalho de meu pai era menos impopular, embora os proprietários dos cães desaparecidos o olhassem às vezes com desconfiança, o que, por extensão, se refletia em mim. Como sócios, à escondida, tinha meu pai os farmacêuticos da cidade, que quase nunca aviavam uma receita sem que nela constasse ao que eles designavam “Ol. can.”, o remédio mais valioso que já se houvera descoberto. Mas a maioria das pessoas não está disposta a fazer sacrifícios pessoais pelos afligidos, e era evidente que muitos dos cachorros mais gordos da cidade eram proibidos de brincar comigo. Isto feriu a minha sensibilidade juvenil e certa feita dirigiram-se a mim para fazer-me de pirata.
Lembrando-me daqueles dias, não posso, às vezes, evitar o arrependimento, pois, levando indiretamente os meus pais à morte, fui o autor dos infortúnios que profundamente afetaram o meu futuro.
Certa noite, quando vinha do gabinete de minha mãe com um exposto, vi passar, à frente da fábrica de azeite de meu pai, um guarda que parecia observar atentamente os meus movimentos. Embora bastante jovem, eu já aprendera que os guardas só acorriam aos fatos mais repreensíveis, de molde que dele me esquivei, enfiado-me na fábrica de azeite por uma porta lateral, que calhou de estar aberta. Travei a porta de uma vez e fiquei só com o meu morto. O meu pai já se recolhera. A única luz daquele lugar provinha do forno, que ardia intensamente sob um dos caldeirões, espalhando uma profunda luz e lançando reflexos rubros nas paredes. No caldeirão, o óleo estava em indolente ebulição, e, por conta de seu movimento, às vezes exibia pedaços de cachorro na superfície. Fiquei a esperar que o guarda se retirasse. Mantive no meu colo o corpo nu da criancinha e lhe acariciei ternamente o cabelo curto e sedoso. Ah, como era bela! Já naquela tenra idade eu gostava muitíssimo das criancinhas e, ao contemplar aquele anjinho, quase desejei que a pequena ferida vermelha de seu peito, obra de minha querida mãe, não fosse mortal.
O que eu pretendia era jogar a criança ao rio, que a natureza sabiamente nos legara para tal fim, mas, naquela noite, com medo do guarda, não me atrevi a sair da fábrica de azeite. “Afinal – disse com os meus botões- , não acho que teria importância se eu vier a entorná-la no caldeirão. O meu pai nunca irá distinguir os seus ossos dos ossos de um cachorro. E as poucas mortes que poderão advir da administração de outro tipo de azeite no lugar do incomparável 'Ol. can.' não serão percebidas em uma população que cresce tão rapidamente". Em suma, dei o meu primeiro passo para o crime e entornei a criança no caldeirão com indescritível tristeza.
No dia seguinte, para minha surpresa, meu pai, a esfregar as mãos de satisfação, informou a mim e à minha mãe que obtivera o óleo de qualidade nunca vista, e que este era o parecer dos médicos aos quais levara amostras. Argüiu que não tinha idéia de como lograra tal resultado, pois tratara os cães como sempre o fizera, em todos os aspectos, e eram eles da raça habitual. Considerei que era o meu dever lhes ofertar uma explicação e, notem bem, teria certamente contido o ímpeto de minha língua se pudesse prever as conseqüências. Os meus pais, lamentando olvidar as vantagens de combinar os seus afazeres, adotaram medidas para reparar o equívoco. Minha mãe mudou o seu gabinete para uma ala do edifício da fábrica e as minhas tarefas com relação ao ofício cessaram. Já não mais precisavam de mim para que me desfizesse dos pequenos supérfluos e não remanescia a necessidade de atrair os cães à condenação, pois o meu pai renunciou completamente a eles, embora ainda ocupassem o honroso nome no azeite. Assim, subitamente ocioso, poder-se-ia esperar que eu me tornasse uma pessoa viciosa e dissoluta, mas não foi isso o que aconteceu. A influência benéfica de minha mãe seguiu protegendo-me das tentações que assediam a juventude, e, além disso, meu pai era diácono de uma igreja. Mas, por culpa minha, estas estimáveis pessoas iam ter um fim tão funesto!.
Ao experimentar um proveito duplo com os seus negócios, minha mãe se entregou ao mister com uma assiduidade nunca dantes vista. Não apenas se desfazia dos indesejados que lhe eram entregues, como acorria às ruas e becos à procura de criancinhas maiores e mesmo adultos que lograva atrair à fábrica. Também meu pai, amante daquele óleo de melhor qualidade, fornia os seu caldeirões com zelo e diligência. Em síntese: a conversão de meus vizinhos em óleo de cão tornou-se a única paixão de suas vidas. Uma avidez absorvente e portentosa invadiu suas almas e ocupou o lugar da esperança que tinham de alcançar o paraíso, que, por outra parte, também os inspirava.
E se atiraram tão vivamente à empresa que os cidadãos reuniram uma assembléia pública, na qual adotaram resoluções que os censuravam severamente. O presidente deu a entender que os ataques sucessivos contra a população eram recebidos com hostilidade. Meus pobres pais abandonaram a assembléia com o coração partido, desesperados e com as mentes perturbadas. Considerei prudente, de toda forma, não entrar com eles na fábrica de óleo naquela noite e fui dormir lá fora, num estábulo.
À meia-noite, um misterioso impulso ordenou que eu me levantasse e espreitasse por uma fresta do quarto do forno, onde eu sabia que meu pai dormia. O lume ardia vivamente, como se esperasse por uma colheita abundante no dia seguinte. Um dos enormes caldeirões fervia devagar, dotado de um misterioso aspecto de contenção, como se aguardasse o momento de envidar toda as suas energias. Mas meu pai não estava na cama. Levantara-se e estava de roupas de dormir. Fazia um nó corrediço numa corda vigorosa. Pelos olhares que dirigia à porta do quarto de minha mãe, deduzi perfeitamente o propósito que lhe ia na mente. Imobilizado e mudo pelo terror, nada pude fazer para contê-lo. Subitamente, a porta do quarto de minha mãe se abriu sem fazer ruído e eles se defrontaram, ambos surpreendidos com a presença do outro. Ela também estava de camisola, e levava, na mão direita, a sua ferramenta de trabalho: uma longa adaga de folha estreita.
Minha mãe foi, igualmente, incapaz de abdicar à única escolha que a minha ausência e a atitude hostil dos cidadãos a deixaram. Por instantes, eles contemplaram mutuamente os olhos acesos e, então, lançaram-se com indescritível fúria um contra o outro. Como demônios, lutaram pelo cômodo todo. Meu pai maldizia. Minha mãe gritava. Ela tentava cravar-lhe a adaga. Ele forçava por estrangulá-la com as grandes mãos nuas. Não sei por quanto tempo tive a desgraça de observar este desagradável momento de infelicidade doméstica, mas, enfim, depois de um esforço mais vigoroso que o ordinário, os adversários subitamente se separaram.
O peito de meu pai e a arma de minha mãe exibiam sinais de contato. Por instantes, olharam-se da forma mais hostil. Então meu pobre e ferido pai, sentido sobre si a mão da morte, saltou à frente e, fazendo pouco da resistência que a minha mãe oferecia, tomou-a nos braços, conduzindo-a ao caldeirão fervente. E, reunindo as suas últimas forças, fê-la nele mergulhar. Em um momento, ambos tinham desaparecido e adicionavam seu óleo àquele do comitê dos cidadãos que os haviam convocado, no dia anterior, à reunião pública.
Convencido que estes funestos acontecimento obstruíam todos os caminhos para uma honrável carreira naquela cidade, abandonei a famosa vila de Otumwee, onde escrevi estras memórias com o coração repleto de remorosos por um ato tão imprudente e que envolve um deveras catastrófico desastre comercial.

A CASA DAS ALMAS - LUIZ POLETO



A CASA DAS ALMAS
- Para Leonardo Nunes Nunes, Paulo Soriano e Henry Evaristo.
Ninguém sabe ao certo quando ela foi construída, mas todos sabem que foi desativada sob estranhas circunstâncias até hoje não explicadas de forma convincente. Mas, independente disso, lá está ela, sozinha em meio ao campo, com apenas uma estreita estrada de terra, que no passado era o único caminho em meio ao ralo matagal que levava até o portão principal da Igreja de Tampadas.
Tampadas é o nome do pequeno vilarejo localizado no interior do país; uma pequena cidade que ainda não tem luz elétrica, e quase não tem população também – muitos foram embora após o fechamento da igreja; e os que ainda vivem por lá, não chegam perto da pequena igreja de ar sombrio e desolado.
Embora a população local evite a igreja, o aviso de não aproximação faz parte da tradição oral daquele povo, e os forasteiros que porventura passam por ali não tem conhecimento da história daquela igreja – muitos nem ao menos tomam conhecimento de que há uma igreja. Dizem que os que por ali se aventuraram nunca mais foram vistos.
Um dia, um desses viajantes chegou até o pequeno vilarejo caminhando. Carregava apenas uma mochila de viagem e uma máquina fotográfica pendurada no pescoço. Chegou até o único bar existente, bebeu um refrigerante com tamanha sede que parecia que não bebia nada há dias; quando terminou, puxou conversa com algumas pessoas que estavam por ali, fazendo perguntas sobre o vilarejo, modo de vida, e outras coisas sem muita relevância. Depois de ouvir as respostas, disse que estava de férias, e estava fazendo um passeio pelo Brasil, visitando apenas as pequenas cidades e os vilarejos do interior, tirando fotos e escrevendo um diário.
Após duas ou três horas de conversa e muitas fotos, pagou a bebida e saiu. Quando estava na estrada de saída do vilarejo, viu uma estreita estrada de terra, já coberta pelo mato alto que crescia à sua volta e quase escondia sua entrada. Sem ninguém por perto, o estranho resolveu percorrer aquela estrada, curioso para saber aonde ela iria dar, já que as casas e o pequeno comércio do vilarejo encontravam-se concentrados na extremidade sul. Com muita dificuldade, caminhou por cerca de dez minutos, até sair em um campo aberto, cercado por algumas árvores que pareciam tão velhas quanto a própria humanidade. Algumas com troncos retorcidos, outras com troncos que pareciam terem sido queimados; mas todas as árvores tinham em comum o fato de não terem folhas.
Observando ao redor, pôde perceber, a alguns metros à frente da estrada, uma pilastra de pedra com quatro ou cinco metros de altura que servia de pedestal a um anjo de mármore que um dia fora branco, mas agora estava tomado pelo terra e pelas marcas da chuva e do tempo. Havia algo na expressão do anjo - que olhava para cima - que o deixou triste e com um sentimento angustiante de solidão. Chegou a pensar que o anjo começou a chorar quando olhou para ele.
Alguns metros adiante viu uma igreja, com um aspecto sombrio e de abandono. Suas paredes, de pedra, já mostravam o quanto o tempo pode ser cruel; a entrada principal consistia-se de uma porta dupla de madeira pintada de azul, já descascada e bem deteriorada. Duas pequenas janelas pairavam como olhos atentos em cada lado da porta. Estendendo-se verticalmente acima do telhado havia uma torre, aonde se podia ver o grande sino de bronze totalmente imóvel, como se estivesse em seu repouso eterno. Chegando perto, percebeu que o portão principal estava fechado, e não parecia haver ninguém por perto. Ao forçar um pouco a porta, esta se abriu, dando passagem para o salão principal.
A única iluminação dentro da igreja era proveniente dos raios de sol que passavam pelas pequenas janelas – sem vidros – nas paredes laterais. Marcas de água que há muito correram por ali indicavam um problema no telhado, e tornavam as paredes um pouco melancólicas. Os bancos de madeira já estavam quase ou totalmente consumidos pelos cupins. Encantado com a beleza sinistra do lugar, o estranho tirou diversas fotos, e dirigiu-se ao que parecia ser a sacristia, no final de um dos corredores.
Quando o estranho passou pela porta, um ar de curiosidade e espanto tomou conta do seu outrora estado de empolgação. A sala, que devia ter por volta de quinze metros quadrados, tinha todas as quatro paredes do recinto cobertas por fotografias antigas, todas com um tom de sépia, emolduradas em belas molduras – todas feitas artesanalmente – e embora aparentassem estar ali há muito tempo, ainda mantinham um bom estado de conservação. Do chão ao teto, tudo estava coberto por fotografias. Todas as fotos eram de famílias, embora não houvesse qualquer texto que identificasse as fotos.
Por vários minutos o estranho ficou ali, olhando as fotos, apreciando aquele ar nostálgico, admirando aquela estranha tristeza implícita no rosto das pessoas – que, curiosamente, não sorriam nas fotos. Algumas fotos aparentavam ser da década de 20, outras de 30, mas certamente nenhuma delas era de depois da década de 40.
Depois de olhar rapidamente as várias fotografias, acabou parando em uma – que talvez tenha sido escolhida aleatoriamente, ou apenas tenha chamado a sua atenção por algum motivo qualquer. Na foto, uma família de nove pessoas posava de forma quase mecânica. Como que estudando a foto, o estranho ficou ali, por vários minutos, analisando cada detalhe da foto. Com os olhos cheios d’água e um sentimento de vazio, proferiu um palavrão ao mesmo tempo que saltava para trás, quando percebeu que uma das crianças da foto começou a chorar. Ele coçou os olhos, achando estar vendo coisas, e sacudiu a cabeça, mas percebeu que não só a criança chorava como as outras pessoas da família gritavam em extrema agonia, com a dor estampada em seus rostos; ao mesmo tempo, pareciam desesperadas para sair da foto.
Ainda atordoado pela visão que acabara de ter, olhou ao redor e percebeu que em todas as fotos a cena se repetia: todas as pessoas gritavam, choravam, e tentavam desesperadamente sair de suas pequenas prisões particulares. O som misturado de choro de crianças e adultos, com os gritos de agonia eram como uma faca que atravessava seu cérebro. Naquele momento, ajoelhou-se tapando o máximo que pôde os ouvidos e fechou os olhos. Em seu interior, parecia estar sofrendo como aquelas pessoas. Chorou, como se estivesse também preso em uma moldura feita artesanalmente.
Algum tempo depois – ele não podia mensurar se foram minutos ou horas – levantou-se, mas ainda sentia o desespero das pessoas ao seu redor. Eram pessoas, não eram? Ou eram apenas suas almas aprisionadas para toda a eternidade em uma foto – ou o que parecia ser uma foto?
Não suportando mais a agonia de estar confinado naquela pequena sala, correu, dirigindo-se à porta pela qual entrara, mas só teve tempo de virar-se para perceber que não havia qualquer porta ali; todas as quatro paredes estavam cobertas de fotografias, e não havia portas ou janelas por onde sair. Gritando, atirou-se desesperado contra as paredes, tentando, inutilmente, encontrar uma forma de sair daquele lugar. Com bruscos movimentos, arremessou as fotos para longe das paredes, mas, a cada porta-retrato que caía, um novo surgia em seu lugar, e mais e mais pessoas gritando, chorando, em uma grande sinfonia desafinada.
Sem qualquer esperança de sair daquele lugar misterioso, após muito gritar e chorar, percebeu que em uma das paredes havia uma moldura com uma foto em que não havia ninguém, apenas um quarto. Analisou aquele estranho objeto mais de perto, ao mesmo tempo que tentava entender o que se passava naquele lugar. Percebeu no quarto daquela foto alguma familiaridade, e, novamente, entrou em pânico: aquele quarto havia sido o seu quarto quando criança. A mesma cama, o mesmo tapete em forma de palhaço, a mesma janela próxima da cama. Naquele momento, o pânico foi tomado por uma saudade; saudade de tempos que nunca mais voltariam, e entendeu que o objetivo de qualquer fotografia era congelar um determinado momento no tempo; um momento que nunca mais será esquecido e ficará ali para sempre. Lembrou-se de quantos momentos desejara ter congelado no tempo.
Fechou os olhos, e a sacristia foi tomada por um imenso clarão, uma intensa luz vermelha. Quando apagou, o quarto havia voltado ao seu estado anterior, a porta encontrava-se no mesmo lugar que estava quando o estranho a cruzou. O estranho, não entanto, não estava mais ali; agora, ele fazia parte daquele imenso mural nostálgico, e naquele momento, ele estava de volta ao quarto que fora seu quando tinha 3 anos de idade. Passaria toda a eternidade preso àquele lugar, e talvez um dia implorasse para sair dali, da mesma forma que todas as outras pessoas que também faziam parte daquele lugar.Luiz Poleto

O ÚLTIMO CAVALHEIRO DAS TREVAS

Aqui vai, atrasado como sempre, o conto que fiz em comemoração ao primeiro aniversário da IRMANDE DAS SOMBRAS. Estava devendo esta postagem ao blog. Espero que gostem!
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O ÚLTIMO CAVALHEIRO DAS TREVAS

Por Henry Evaristo

(Conto comemorativo ao primeiro aniversário da Irmandade das Sombras)


Richmond não acreditava na possibilidade de que o morto pudesse retornar mas Harmony fora enfático: Ele retornaria após a leitura correta do “Im Reich Der Farbtöne” (1).

Os dois estavam em uma das inúmeras salas escuras do castelo gótico do barão Von Sorian, na Moldávia. Ele havia sido o ultimo representante da Irmandade das Sombras e desaparecera misteriosamente no ano de 2057.

Agora Richmond e Harmony haviam localizado o local incrustado em meio às inóspitas e solitárias montanhas dos Cárpatos. Sem sombra de dúvidas aquele havia sido o lugar de reuniões do grupo de literatos mais perturbador de toda a história da literatura universal; produtores de obras que aterrorizaram o mundo e foram capazes de transformar o senso de horror a níveis globais. Houve muita perseguição à concepção artística da Irmandade; governos americanos e europeus tentaram a todo custo banir suas publicações mas o povo insistia em ler cada um dos novos trabalhos de seus membros. Foram os discursos públicos e campanhas publicitárias cada vez mais agressivas, promovidas pelos governos dos países mais conservadores, que fizeram com que o grupo buscasse o isolamento nas montanhas. Um local escondido dos olhos de todos onde eles poderiam buscar inspiração e concentração total. E foi então que seus temas e suas produções encontraram um nível jamais imaginado nos anais das concepções de arte sombria.

As publicações continuaram de forma clandestina, mas, ainda assim, chegando frequentemente ao alcance de seus leitores nas mais diversas linguas. E houve quem afirmasse, em lugares tão diversos do mundo quanto a África e a Suíça, que a leitura das obras dos escritores era prejudicial à saúde física e mental de quem lia.

Richmond e Harmony, a duras penas e depois de vinte anos, obtiveram autorização do governo local para explorarem as ruínas do velho castelo. Foi entre as inúmeras salas, e em meio a extensas e mofadas estantes de livros, que eles encontraram a passagem para a sala secreta da Irmandade, conhecida como “A câmara dos Tormentos”; porém, daquele lugar escuro e úmido saíram durante o tempo em que os escritores ali permaneceram apenas os mais puros deleites sombrios que um leitor jamais sonhou em desfrutar. Não causavam tormentos ao corpo como queriam crer os puritanos do mundo. E na mente, o único mal que originaram talvez tenha sido a libertação dos afetados deste mundo apenas material oferecendo-lhes mergulhos profundos em vastos e encantados universos etéreos.

O que Richmond e Harmony queriam era encontrar o lendário corpo insepulto do ultimo representante do movimento. Os outros, todos eles, havia sido descobertos em ruínas abandonadas ao redor do mundo sempre mutilados de forma bastante sistemática. Os dois pesquisadores do insólito encontravam razões para crer que as partes extraídas dos cadáveres estariam naquele local, junto ao corpo do barão Von Sorian. Estes motivos eles cooptavam das leituras e da interpretação da obra máxima da Irmandade, o terrível livro escrito em conjunto por todo o grupo, “Im Reich Der Farbtöne”. Segundo o compêndio seria possível, através da execução de determinados rituais, manter eternamente acesa a chama da imaginação obscura do grupo. Mas, lendo atentamente, e de posse das traduções dos trechos escritos em aramaico, se poderia encontrar “um livro dentro do livro” e este era muito mais terrível. Harmony o lera, e seus cabelos haviam embranquecido do dia para a noite. Para Richmond, sempre menos curioso que o amigo, aquela era a suma confirmação de que o material era sim danoso ao corpo e a alma; todavia, como fã incondicional da obra da Irmandade, nunca se opôs em seguir o outro em sua empreitada.

Os rastros do barão haviam sido seguidos desde sua fonte original, no nordeste brasileiro, sendo elaborada uma detalhada reconstituição de sua trajetória entre a cidade de Salvador e as montanhas dos Cárpatos. Ele adquirira o castelo através do investimento de recursos próprios, muito provavelmente originários de espólios de família. Depois agrupara os irmãos em Londres e de lá partiram para sua ultima morada terrestre.

Depois disso, não se sabe como, seus livros de contos, romances e novelas terríficas apareciam nas bancas e livrarias sempre sem que nenhum funcionário desse conta de sua encomenda e compra. Depois que as atividades cessaram, e os primeiros corpos mutilados foram surgindo, o ultimo livro apareceu numa biblioteca de Amsterdam. Foi lá que Peer Harmony o viu pela primeira vez. Nele descobriu, lendo as entrelinhas, um plano sinistro. Sua casa, nos subúrbios, era repleta de livros de terror e ocultismo. Juntando informações de inúmeras fontes ele entendeu o propósito da obra e assumiu para si a missão implícita ao descobridor. Foi apenas um dia antes de chamar a sua casa o amigo Albertus Richmond que ele terminou a tradução da ultima parte do rito principal. Era uma cerimônia de ressurreição. E dizia que seria dado o poder de dar continuidade à obra da Irmandade das Sombras àquele que, encontrando o cadáver do ultimo cavaleiro das trevas, o reerguesse da morte. As páginas finais do grimório continham todo o planejamento e prática da missa a ser realizada.

No dia 06/06/2076, dezenove anos depois do desaparecimento da Irmandade das sombras, Richmond e Harmony estavam no interior do castelo abandonado para trazê-la de volta.

Não havia o que questionar: O corpo encarquilhado e escuro que jazia em uma pedra de frio mármore negro era de fato o do barão Von Sorian; Porém, ele não era de forma nenhuma apenas isso. Seus membros não eram apenas aqueles com os quais viera ao mundo originalmente; eles estavam misturados, com costuras grossas e malfeitas, aos pedaços retirados dos cadáveres dos outros irmãos das sombras. Suas pernas não eram apenas suas pernas; eram também as de Lord Linx e Lord Henry. Seus olhos não eram apenas os seus olhos, mas também os de Lady Celly e Lady Hell. Todo o seu corpo era um imenso retalho, tal qual um Frankenstein ainda mais horrendo, que agregava as partes de todos os outros membros. Viam-se aqui partes das mãos de Lord Roger Silver misturadas com as unhas de Sir Luciano Barreto e os dedos de lady Mauren Müller; ali, a pele de Lady Catherine costurada aos cabelos de Sir Luiz Poleto e Dom Alexandre Nunes. Via-se na abominação híbrida, um rosto magnânimo: Numa metade era o do próprio Barão; na outra, o da condessa Victoria Magna.

A visão estarrecedora derrubou o livro das mãos de Richmond à primeira vez que ele a avistara de sob a cortina de poeira que se erguera quando a passagem por trás da estante fora aberta. Depois, como ocorre com um odor nefando, ele acostumou-se e não mais sentiu os nervos abalados. Ou curara-se ou não tinha mais nervos. De qualquer forma tinha que se controlar; os planos de Harmony iam muito mais além.

Foi numa sexta-feira que o ritual foi realizado. Uma descrição detalhada de todo o ocorrido seria deveras traumática para o leitor. Opto por partir do ponto em que tudo se tornou tão palpável quanto as pedras das paredes bolorentas do castelo Von Sorian. Tudo o que era necessário à manobra mágica se encontrava na própria câmara secreta. Os autores haviam cuidado de tudo!

Às seis da tarde, quando o sol escoava seus últimos raios avermelhados por entre os picos cobertos por neves eternas dos Cárpatos, Richmond e Harmony iniciaram a missa da ressurreição. Após a consagração dos pontos cardeais aos espíritos da terra, depois que os signos mágicos haviam sido traçados, leu-se a conjuração principal:

Per Adonai Eloim, Adonai Jeovah!Adonai Sabbaoth, Metrathon ou Aglamethon!Verbum Pythonicum, mysterlum salamandrae,Cenventus sylvorum, antra gnomorum, daemonia coelli god.Almosin, Gibor,Jehosua, Evam, Zariathnatmik!Veni, Veni, VeniEgo te provoco!Ego te provoco!In domine meum!VeniVeniVeni!” (2)

Primeiro foram as velas que se apagaram sem que houvesse vento algum, depois as dobradiças das portas estalaram sem que ninguém as manipulasse. Os livros das estantes, então, saltaram de seus lugares e, espalhados no chão, se abriam e fechavam sozinhos. Lá fora, a noite provinha o ar de sons lamentosos; de gemidos de um quase prazer bestial. Eram como o frenesi de uma multidão cujas vozes se espalhavam pelas florestas e montanhas geladas.

No interior da Câmara dos Tormentos, Richmond e Harmony presenciaram o ressurgir do mito. O nascimento de uma nova era livre. De súbito, a coisa em cima da pedra negra abriu os olhos. E seu corpo foi percorrido por violentos espasmos. No ambiente espalhou-se um forte odor de raiz de mandrágora em meio a densa fumaça azul esverdeada e ouviu-se o som de ossos se partindo quando o ressurrecto tentou se erguer. E ele, o último cavalheiro das trevas, olhando no fundo das almas de seus renovadores, falou, e sua voz era a de todos os irmãos juntos:

“Tu lestes bem nossos ensinamentos!” E enquanto falava se dirigia a Harmony. Depois, encarando com seu rosto retorcido a massa trêmula em que se tornara Albertus Richmond, disse: “Tu, não temas! Não há razão para os teus temores!”.

E continuou:

“Temo eu, pois esta algazarra que vem lá de fora me perturba deveras. O que são, pois, estes gritos, estes risos, estas exclamações?”

Neste momento o pior medo, o horror mais desmesurado, se apossou do coração de Richmond. Não havia meios de prever a reação do ressurrecto à segunda parte do trabalho de Harmony. O que fizeram era para toda a humanidade, mas não se poderia saber se a coisa iria aprovar. Assim, a única ação cabível aos dois mortais mais completamente tomados pelo poder da literatura das sombras, era abrir de uma vez a enorme janela que dava para a paisagem fria do lado de fora.

Num pulo, correram a destrancar e retirar as travas que haviam mantido no escuro aquele quarto por mais de vinte anos. Em menos de trinta segundos as duas partes pesadas do janelão se abriram deixando entrar uma rajada de vento frio que espanou para o ar toda a poeira de muitos e muitos anos. Junto com o vento o som dos gritos de êxtase invadiu os cantos do velho castelo e a coisa que era toda a Irmandade das Sombras levantou-se de seu leito de mármore. Seus velhos ossos estalavam depois de décadas de inércia.

E os sons continuaram pela noite. Repercutindo pelos vales e bosques ao luar. Era um som portentoso, nítido, próximo. Quando o ressurecto alcançou a sacada, a visão que teve o encheu do mais puro e indescritível deleite. Lá, cobrindo toda a extensão visível da terra, mergulhando em direção ao horizonte escuro como um enxame pululante interminável, estavam milhões de pessoas. E elas traziam consigo artefatos luminosos que brilhavam na escuridão.

A coisa que era a Irmandade virou-se para Richmond e Harmony mas não precisou falar.

“Eis aí, mestre! Teus fãs de todo o mundo que vieram celebrar este vosso renascimento. Eu mesmo, e meu amigo, chamamos e convencemos cada um deles a estar aqui nesta noite. Eles são milhões, e o início do teu reino!” Disse Harmony e seus olhos estavam cheios de lágrimas.

“Vê Mestre!” Disse Richmond vencendo o medo em face da emoção. “Cada um trás papel e caneta. Eles querem ouvir o início da nova estória! Fala a eles!”

Então a Irmandade das Sombras avançou mais para fora da janela até um ponto em que já quase se debruçava para o ar. E do umbral ouviu e viu a maior ovação que as forças do mundo já testemunharam. Com um sorriso no rosto ergueu os braços e, depois que a multidão fez silêncio, começou a escrita de uma nova era.
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(1) - “Im Reich Der Farbtöne” = No Reino Das Sombras (N. do E.)
(2) - Ritual de invocação retirado do livro "O caso de Charles Dexter Ward" de Howard Phillips Lovecraft que por sua vez o adaptou ao seu conto extraindo-o da obra "Dogma e ritual da alta magia" do ocultista francês Elifas Levi. (N. do E.)

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Esta é minha singela homenagem para o dia do aniversário deste grupo do qual tenho a honra de participar. Agradeço por todos vocês terem um dia entrado em minha vida, ainda que virtualmente.Alguns membros não foram citados formalmente por este texto mas isso não diminui, de forma nenhuma, sua importância perante o grupo. Todos, como foi visto, somos um só!
Henry Evaristo – 21/09/2006