sábado, agosto 16, 2008

É Inevitável...



Por Charlise de Orleans

É inevitável a sensação de mais...
É inevitável a sensação de buscar...
É inevitável a sensação de ganhar...
É inevitál a vontade de vencer...

É mais inevitável ainda a vontade de estar no poder...
A vontade de vencer e ganhar...
É inevitável a sensação de poder sobre si mesmo....

É inevitável a vontade de sair, fugir, sumir...
É inevitável também a espera....
É inevitável a perda...
É inevitável esquecer...

É inevitável querer,
É inevitável saber fazer...
É inevitável acontecer...
É inevitável perder...

É ainda pior que a demora, pior que a derrota,
É ainda pior que os males, a tortura da vida...
É ainda pior não poder decidir...
É anda pior não saber como, onde e porque...

É ainda pior batalhar e tudo se resumir a pó...
É inevitável o egoísmo,a traição a mentira...
É inevitável ir além...
É inevitável a curiosidade sobre o que a vida pode oferecer...

Porém...

É inevitável,imprevisto...
Passivo, terrível... doloroso...
Demoníaco, prazeroso,
Devagar,rápido,quisto...

É inevitável a morte...

sexta-feira, agosto 08, 2008

SOMBRIAS ESCRITURAS ENTREVISTA PAULO SORIANO


Entrevista retirada do site SOMBRIAS ESCRITURAS



Em entrevista ao site Sombrias Escrituras, Paulo Soriano fala sobre seus contos e seu trabalho realizado no site Contos Grotescos.

S.E.- Soriano, é com prazer que o tenho aqui no site, grande contista e amigo. E por falar em contos, poderia começar nossa entrevista falando sobre os motivos que o fizeram se interessar mais por contos de terror?


P.S.- O prazer é todo meu! Fico honrado com o convite. É muito bom estar aqui nas Sombrias Escrituras. Quando eu era criança, costumava assistir aos filmes de terror que passavam na extinta TV Tupi e na então incipiente TV Globo. Dentre outros, eram exibidos na telinha os bons e velhos filmes produzidos pela Hammer, estrelados por Vincent Price, Peter Lore , Christopher Lee e Peter Cushing. Eu adorava aquilo. Depois vieram as leituras, em especial Edgar Allan Pöe, William Peter Blatty, Sheridon Le Fanu e Stevenson. Quando me pus a escrever contos, não deu outra: só saía terror...

S.E.- Sabemos que no cinema e na literatura existem o terror psicológico, o macabro, o violento, etc... E em seus contos? Qual lado do terror você procurar mais explorar?


P.S.- Acho que o que escrevo está mais para o horror. Escrevo para que as pessoas leiam e digam: que horrível! Gosto também do elemento trágico no horror. Um certo conto meu já pôs mais de uma pessoa pra chorar. Mas o que eu gosto mesmo é de uma surpresinha no final, ou de uma reviravolta no enredo.

S.E.- Você também mantém um site, o "Contos Grotescos", que divulga contos de escritores dedicados ao gênero do horror e da fantasia. Como surgiu esse site e como vem sendo o desenvolvimento do mesmo por parte dos escritores participantes?


P.S.- Bem, tudo começou quando pedi a um amigo e colega de trabalho, Waldir Santos, para revisar alguns dos meus contos. Ele gostou muito e criou uma comunidade no Orkut, “Escreva mais contos, Paulo Soriano”. Atendendo a pedido de amigos, criei uma “home page” no Yahoo, na qual publiquei algumas narrativas. Daí para o “site” foi um pulo. Hoje, o “site” conta com um grande número de colaboradores. Tenho exemplos de muitas pessoas que foram incentivadas a produzir narrativas de horror e fantasia acessando e lendo os Contos Grotescos, o que é mais que gratificante. E creio, também, que o “site” está conseguindo cumprir o seu desiderato: ser um veículo de publicação de novos talentos que não conseguem publicar em papel.

S.E.- Existe também a "Irmandade das Sombras", que de acordo com seu site, é uma confraria literária que reúne vários colaboradores contistas de horror e fantasia. Fale mais sobre essa Irmandade... seus feitos, blog, publicações etc...


P.S.- A Irmandade das Sombras é uma confraria de escritores amadores criada por Linx e Rogério Silvério de Farias, cujo objetivo é cultivar e disseminar o gênero fantástico. Dela faço parte, com muito orgulho, desde o dia de sua criação. A confraria se reúne no “site” Recanto das Letras e, graças a colaboração de todos, dispomos de um blog (www.recantodassombras.blogspot.com) e já publicamos uma antologia de contos, pela editora Câmara Brasileira de Jovens Escritores. Atualmente, a Irmandade das Sombras mantém uma revista literária, a IS Magazine, periódico eletrônico ancorado no “ site” Contos Grotescos e que, atualmente, já vai em seu terceiro número. No futuro, deveremos publicar, também, antologias em “e-book”.

S.E.- Seu site, Contos Grotescos, atualmente, possui mais de trezentos contos. Qual sua visão em relação às publicações de textos na internet, suas implicâncias para nossa literatura, o que se ganha e o que se perde com essa liberdade digital?


P.S.- Acho que a “internet” é uma grande conquista. Certa vez registrei que, no Brasil, fazemos uma constatação amarga e iniludível: o livro é um objeto de luxo, ao alcance de muito poucos. A evolução tecnológica na produção de livros é inversamente proporcional ao acesso da população a eles. É dizer, as editoras publicam ótimos exemplares, cada vez mais belos e sofisticados, para uma casta privilegiada: a dos que podem, sem sacrifício, desembolsar de 60 a 100 reais por uma brochura de trezentas a quatrocentas páginas. Ao seu turno, é tarefa quase impossível publicar no Brasil. Em se tratando de ficção, o mercado editorial vale-se essencialmente de traduções de autores estrangeiros consagrados. A "internet" vem a ser, assim, de fato, uma ferramenta poderosa para disseminação de textos e idéias. Não houvesse tal ferramenta e, certamente, os meus contos não seriam conhecidos por mais de uma dúzia de pessoas. Assim como eu, muitos outros autores se valem do meio cibernético para divulgação de sua obra, formando uma extensa malha de difusão e assimilação da literatura. E há ainda sítios especializados na divulgação de trabalhos literários, como é o caso do Recanto das Letras, que congrega autores – profissionais ou não – das mais variadas tendências. Creio que com a “internet” não há o que se perder. Todos têm a ganhar, autores ou leitores. O que se pode afirmar é que, como toda mídia, a eletrônica tem suas exigências e especificidades; cumpre ao autor se adaptar a elas.

S.E.- O terror como inspiração literária, no seu caso, vem de quais fontes?


P.S.- Sobretudo de Allan Pöe. Mas exercem-me, também, influências autores que não se dedicaram - ou pouco se dedicaram - ao gênero, como Eça, Alexandre Herculano e Emily Brontë. Mais recentemente, e com menor intensidade, posso citar a influência de autores como Bierce, Lovecraft e King.

S.E.- Além da literatura, existe outra forma que você gosta ou gostaria de se expressar?


P.S.- Não, não há. No passado, gostava de desenhar e de pintar. Hoje em dia não tenho mais paciência. E, recentemente, descobri que estou enxergando muito mal...

S.E.- Quando começamos a ler seus contos, uma espécie de feitiço, lentamente, nos toma a atenção e nos deixamos absorver pela leitura. Como você inicia a criação de seus textos, e como se desenrola o processo de criação até o desfecho?


P.S.- É verdade? Não sabia! Fico feliz com isso. Bem, na maioria das vezes elaboro os meus contos deitado, esperando o sono chegar. Sofro de uma insônia terrível desde a adolescência. Assim, para induzir-me ao sono, fico criando histórias em minha mente. As palavras vão surgindo, as imagens vêm chegando. Muitas vezes, quando resolvo ir ao computador, a narrativa já está praticamente pronta em minha cabeça. Outras vezes, descarto sumariamente a história. Atualmente, por exemplo, estou induzindo o sono com uma história em que, no futuro, cientistas conseguiram criar uma espécie de intersecção no espaço-tempo. Através dessa intersecção, eles verificam que, na realidade, Jesus morreu na cruz, mas não ressuscitou. Concluíram que esta verdade seria um duro golpe para a civilização ocidental. Então eles interferem na linha espaço-temporal, alterando o passado e a ajustando à tradição cristã: antes que a morte de Jesus advenha, os cientistas injetam no Salvador uma espécie de droga que o deixa em estado similar ao da catalepsia. Jesus é dado por morto e sepultado. Mas ao final do terceiro dia... ainda não sei como vai acabar. Talvez hoje, antes de dormir, conclua a história, que, aliás, já está descartada. Mas nem sempre é assim. Não poucas vezes me sento ao computador, com a cabeça completamente vazia e, em vinte ou trinta minutos, tenho uma história pronta. Como eu sou muito ansioso e impaciente, as minhas histórias saem sempre de chofre. Jamais escreverei um romance.

S.E.- Você tem muitos fãs. Já pensou no lançamento de um livro de contos seus para breve?


P.S.- Outra coisa que não sabia... Eu tenho fãs! Coisa difícil para um escriba criticado justamente pela linguagem “difícil”, que afasta muitos leitores. Bem, já pensei, sim. O problema é que não consigo elaborar uma seleção de contos para publicação. Por mais que eu tente, não sei o que incluir e o que deixar de fora. Tenho a idéia de publicar contos ambientados na Idade Média (eis aí a influência de Eça e de Herculano). Mas não sei se a idéia irá vingar. King disse certa vez que o pior crítico do autor é o próprio autor. Acho que ele tem razão.

S.E.- Obrigado pela atenção, Soriano, seja sempre bem-vindo em Sombrias Escrituras. E para finalizar, deixe seu recado pois o espaço é seu!


P.S.- Eu agradeço às Sombrias escrituras por esta oportunidade. O cronista João Costa escreveu, com pertinência, e eu gosto sempre de frisar, que "é provável que não haja gênero literário de mais difícil construção e, não obstante, de maior tendência para ser intelectualmente discriminado quanto o sobrenatural. Muitos críticos consideram tal gênero um exercício intelectual de segunda ordem, aquém da profundidade e complexidades necessárias para, a partir dele, elaborar-se um verdadeiro clássico literário..." Pois bem, digo aos leitores de Sombrias Escrituras que não se deixem seduzir pelos críticos preconceituosos: continuem fãs do fantástico. Com isso, só temos a ganhar. E muito.

O VISITANTE DO ESCURO



O VISITANTE DO ESCURO




Um conto de Henry Evaristo





Os livros eram a única companhia de Mendel no escritório da administração. Não gostava da sensação de solidão que o lugar impingia-lhe e muito menos da determinação da direção para que mantivesse as luzes externas apagadas a fim de surpreender algum invasor. Para diminuir a irritação pensava insistentemente no salário e nas horas extras que receberia com as quais poderia finalmente pegar um ônibus e ir passar o natal com seus filhos no estado vizinho; ademais, era o segundo emprego fixo que arranjava em mais de cinco anos; mas o primeiro no turno da noite.

Como se não lhe bastasse o fato de seu ofício macabro situar-se às margens de uma estrada que, à medida que o sol se punha, ia se tornando cada vez mais perturbadoramente deserta, ainda lhe apetecia deveras a leitura de textos terríficos tais como A SOMBRA DO DESCARNADO e O ANDARILHO DA NOITE, ambos romances medonhos de seu escritor favorito, o canadense Norbert Durand.

Sua função era guardar o estabelecimento não permitindo a ação dos vândalos e ladrões de túmulos que vinham agindo desmesuradamente nos últimos dias desde que o vigia anterior demitira-se sem mais explicações. Para isso, a parede central da sala de madeira nos fundos do terreno contava com uma enorme janela que possibilitava uma visão privilegiada do lugar.

Naquela noite em específico as leituras apavorantes que fizera desde cedo o obrigaram, por volta das 23 horas, a cerrar as pesadas cortinas que ladeavam a vidraça de sua janela de vigília. É que a combinação entre os horrores que lia compulsivamente nas páginas amareladas e a visão das lápides imersas nas trevas da noite do lado de fora não estavam lhe fazendo bem aos nervos. Mais de uma vez tivera que interromper a leitura para, de lanterna em punho, dar uma olhada nas imediações por causa de estranhos ruídos que notara em meio ao gemido do vento invernal.

A primeira vez imaginara ter ouvido demasiados latidos de cães das redondezas e, lá fora, chegou mesmo a ter que espantar alguns que se aglomeravam em frente a um portão lateral. A entrada dava acesso diretamente para algumas covas simples no final do cemitério, onde o terreno entrava em franco declive ao se encaminhar para onde eram enterrados os indigentes.

A segunda interrupção em sua leitura foi provocada por sons distantes de batidas surdas que alguém parecia estar desferindo insistentemente em alguma superfície resistente. Às implicações desta possibilidade ele preferiu renunciar e resolveu não sair de dentro da saleta. Todavia, a partir daí, manteve-se involuntariamente alerta e não esqueceu de trancar bem a porta.

Estava quase que totalmente absorto novamente em seu passatempo quando, de repente, avistou com o canto do olho um vulto escuro passar correndo bem diante à janela. Ergueu-se de um salto e sacou o revolver. Tremia. Lentamente dirigiu-se até a porta, mas, logo depois, desistiu e resolveu dar uma espiada para fora através da vidraça.

Aproximou-se da superfície fria, e olhou.

Não avistou absolutamente nada e ficou cismando se não deveria parar de ler aquelas coisas por aquela noite. Foi quando o animal saltou da escuridão quase se chocando contra a janela. Mendel se jogou para trás e se deixou cair sobre a cadeira que ocupava antes. Por um momento sua visão se embaralhou de tanto medo. Depois viu, do lado de fora, um grande cão marrom, de orelhas em pé, que fitava para o lado de dentro ofegante e amedrontado. Arfava de tal maneira que era possível ver seus pelos se agitando sobre a pele. Imediatamente Mendel lembrou-se da passagem que as chuvas torrenciais da semana anterior haviam aberto num trecho do muro setentrional do cemitério. Elas não davam passagem a nenhum homem, mas poderiam ser perfeitamente caminho para um exemplar daqueles. Aquilo o acalmou e retirou a aura de "coisa sobrenatural" que o cão já estava assumindo na mente afetada do pequeno vigia.

Porém, algo parecia estar brutalmente errado com a cena. Aquele animal estava mortalmente amedrontado e olhava alucinadamente para dentro do posto de vigília, para os olhos de seu único ocupante. E aproximou-se da janela, pouco antes de desaparecer na noite, como que a implorar que lhe abrissem a porta.

"É de grande porte, como um Mastiff." Pensou Mendel. "Do que teria medo afinal?". Resolveu afastar o pensamento e voltar a sua leitura. O pobre bicho já deveria estar longe. Com certeza retornara para a estrada, pois o ouvira emitir um ganido curto em algum lugar oculto de sua visão. "Provavelmente arranhou o lombo" Pensou. "Ao se arrastar de volta pela passagem estreita por onde entrou".

Baixou novamente a cabeça e recomeçou. Desta vez, no entanto, demorou bastante a conseguir atingir o mesmo nível de concentração com que iniciara seu turno. A noite ao redor de seu posto assumira uma outra conotação em sua mente. Para ele aquele maldito cemitério bem poderia estar sendo visitado pela entidade que vagava por aquelas estradas. Dizia-se que já fora avistada centenas de vezes pelas cercanias. Ninguém poderia afirmar o que era, e ele mesmo não acreditava em assombrações. Muitos juravam que se tratava de um vampiro; outros a chamavam de demônio. E muitos sujeitos de fora já haviam visitado a região com suas máquinas para tentar encontrar alguma coisa concreta, mas nunca obtiveram êxito algum. Em fim, para Mendel, até aquela noite, as lendas locais nunca tinham tomado tanta consistência.

De sua cadeira de madeira, com os livros de Durand em sua frente, Mendel passou a imaginar o que faria se de repente a tal fera surgisse rosnando em sua janela. Como aquele estranho cão, ela o olharia nos olhos, mas depois, em vez de desaparecer, se jogaria contra o vidro até conseguir entrar para arrancar fora suas entranhas. Não pôde mais fitar aquele quadro negro; levantou-se, correu até as cortinas e as fechou depressa evitando a todo custo olhar para a escuridão do lado de fora. Tinha a todo o momento a impressão de estar ouvindo um ganido de dor canino que viesse de algum lugar nos fundos do cemitério.

Depois foi até o banheiro. Precisava aliviar a bexiga da pressão que ali surgira. Abriu o zíper, segurou a ponta do cinto para não molhar e soltou o fluxo que lhe oprimia o baixo-ventre. Nem bem começara ouviu um baque violento contra a vidraça que o fez virar-se de súbito para fora do minúsculo compartimento, sacar sua arma e disparar aleatoriamente atingindo a única lâmpada que servia de iluminação para o lugar onde estava. A sala mergulhou imediatamente numa escuridão ainda maior do que aquela tão terrível que dominava o mundo do lado de fora. E Mendel ficou paralisado de medo.

A arma tremia loucamente em sua mão. Seu instinto de sobrevivência lhe ordenava que disparasse contra qualquer coisa que se movesse à sua frente. E ele, com seus olhos contraídos de pavor, via pouco ou quase nada em meio a escuridão.

Mendel era novato. Naquela situação não lembrava mais do que lhe fora dito quando de sua contratação na semana anterior. Não lembrava do interruptor que acendia as luzes exteriores; não lembrava sequer do telefone na parede atrás da porta do banheiro. Lembrou-se, no entanto, e devido à urgência da luz, da lanterna guardada na última gaveta de sua mesa. Ia avançar para lá quando, de súbito, a vidraça estourou com um novo impacto, e se estilhaçou em mil pedaços cortantes que saltaram para o espaço interior com rapidez assassina. Fixaram-se em toda parte, espetando papéis em cima da mesa, rasgando as páginas amareladas dos livros de Durand e atingindo um dos olhos do vigia em desespero. Mas os estilhaços não adentraram o modesto escritório sozinhos. Em meio a nuvem mortal tombou inerte ao soalho de madeira uma massa meio disforme de carne lacerada e ossos.

Mendel jogara-se para o lado de dentro do banheiro após sentir o impacto do objeto cortante em seu olho esquerdo e agora estava dominado por uma dor aguda enquanto ficava cada vez mais banhado em sangue. Mesmo assim pôde notar que partes das cortinas que não haviam sido dilaceradas continuavam baixas e que, apesar do vento do lado de fora, não podia ver objetivamente o que havia por lá. Olhou para frente em direção ao cadáver ensangüentado que jazia a poucos metros de onde estava e reconheceu, por entre a turvação que afetava sua visão, o cão marrom que havia visto pouco antes. Estava comido, devorado parcialmente. Mendel percebeu que sua cabeça estava aberta e lhe faltavam coisas lá dentro. No entanto, alguns de seus membros ainda se moviam em espasmos curtos.

Lentamente tentou se locomover procurando fazer o mínimo de barulho possível, mas esbarrou em um monte de vidros quebrados que lhe abriram um corte profundo em uma das mãos. Ele gritou de dor, foi inevitável, e seu grito chamou a atenção da coisa que estava do lado de fora, pois os frangalhos das cortinas se ergueram até quase descobrir uma silhueta alta e magra que se recortava contra a fina luminosidade do nevoeiro que se formara com a chegada da madrugada.

Mendel soltara sua arma com o impacto que sofrera. Não podia atirar naquilo que estava prestes a entrar em sua sala. Não podia fugir no escuro sem nada enxergar que fosse muito além de uma nuvem vermelha em seus olhos. Resignado, prendeu a respiração e esperou que o que quer que fosse se revelasse por inteiro - e o conduzisse a uma horrenda alvorada de medo e dor. Foi então que veio a voz e a visão que o enlouqueceram. Do lado de fora, erguendo os restos de tecido da cortina da janela, estava um homem de terno - um terno simples, escuro, discreto; a vestimenta padrão com a qual enterravam os mais humildes da região. Tinha a pele amarelada e falou com uma voz que não podia vir de um ser vivo:

"Estou com fome! Estou com fome! Dê-me meu cão!"

Mendel perdeu os sentidos e assim foi encontrado na manhã seguinte pelos zeladores. A polícia foi chamada e os agentes passaram muitos dias tentando entender o que se passara. Apesar dos danos na estrutura física do escritório e no corpo do funcionário, nada indicava a presença de uma segunda pessoa no local durante a noite em questão. Ele e o cadáver semi-devorado do cão foram encontrados a meio caminho dos fundos do cemitério, no lugar em que o terreno se tornava descendente e levava à ala onde eram enterrados os indigentes.

Pensou-se que o vigia enlouquecera de repente e causara tudo ao local e a si mesmo. Inclusive, num ato de extrema insanidade, teria matado e devorado o cão de rua. Argumentou-se que seus ferimentos teriam sido feitos pelo animal em desespero a lutar pela vida; mas quem quer que o visitasse em seu quarto acolchoado no sanatório municipal, e conseguisse observar mais detalhadamente, poderia jurar que as marcas que se espalhavam por seu corpo, em lugares que ele mesmo jamais poderia alcançar, eram de grandes dentadas humanas.