sábado, dezembro 15, 2007

A Cabeça da Mula

Por Mauren

CONTO COM LEVE APELO ERÓTICO

O Padre Alcides desligou o telefone e se vestiu, a contragosto, mas apressado. Sabia que a questão era urgente. Vestiu uma capa por cima da batina, pegou o guarda-chuva e saiu.
Enquanto dirigia o carro pelas ruas estreitas daquela pequena cidade, pensava no que ouviria quando chegasse na casa de Pedro. O jovem parecia bastante perturbado. Mesmo assim, o Padre Alcides não sairia de casa no meio da noite, debaixo daquela chuva torrencial, se não fosse a grande amizade que nutria com Mariana, a mãe do garoto, sua paroquiana há muito tempo – o receio em desgostá-la era o que o movia, muito, muito mais do que a preocupação com a mente abalada do rapaz.
Pedro tivera uma educação muito rígida. Repressiva, até. Não que seu pai tivesse prestado para tanto. O marido de Mariana era um homem pusilânime, um fraco, quase um covarde. Mas a mãe, seguindo os conselhos do padre, esforçara-se para torná-lo um homem puro e livre de vícios. Porém, desde o dia em que o pai de Pedro morrera, há mais ou menos um mês, o garoto estava bastante transtornado. Praticamente não falava, comia muito pouco, quase não saía do sobrado em que morava com a mãe. Quando o pai de Pedro fora vítima de um ataque cardíaco, o jovem estava sozinho em casa com ele. O padre desconfiava que o rapaz se sentisse culpado, de alguma forma. Ou que tivesse ficado traumatizado com aquela situação horrível.
Quando bateu na porta, esperava que quem viesse abrir fosse Mariana. A mãe de Pedro era uma mulher ainda bastante bonita. Tinha pele muito clara, como porcelana, cabelos cor de trigo e olhos muito azuis. Quando usava um véu para ir à igreja, o padre a achava parecida com uma imagem de santa. E ele sabia que fora assim que Pedro se acostumara a vê-la: como uma santa. A personificação da pureza. O jovem havia inclusive composto poemas para sua mãe, onde a comparava com as mártires da Igreja, e o padre acreditava que ele só não a colocava no mesmo patamar da Virgem Maria por não se considerar digno de ser filho de Nossa Senhora.
Mas quem abriu a porta foi o próprio Pedro. O padre o olhou com interesse. O jovem tinha o olhar perdido, e lhe pareceu que tremia ligeiramente, mas seus gestos eram calmos e estudados. O rapaz o convidou para entrar e lhe pediu que se sentasse.
 Pois bem  disse o Padre Alcides, ao se acomodar.  Vim o mais rápido que pude. De que precisas?
 Preciso que o senhor me ouça, padre  respondeu o jovem.  Em confissão.
 Certo, meu jovem. Mas não poderias ter esperado até amanhã e ido à igreja?
Súbito, o rapaz tomou-lhe as mãos.
 Não, padre. Eu não agüentaria esperar até amanhã. Eu precisava falar com o senhor hoje. Agora.
Alguma coisa na atitude do rapaz o inquietou. O padre olhou em volta.
 Onde está a tua mãe? perguntou.
 No quarto. Dormindo.
 Ela não sabe que tu me telefonaste?
 Não faz idéia, padre.  Suspirou.  Mas eu precisava, eu precisava muito conversar com o senhor hoje, e não queria que ela soubesse.
O padre o encarou com severidade e retirou as mãos das dele.
 Não deverias esconder coisa alguma da tua mãe  disse.
 Oh, padre, mas eu não poderia lhe contar! Não quero vê-la sofrer de novo, como sofreu quando teve de me castigar.
 Quando teve de te castigar?
 Sim, padre. Aquela vez, quando eu tinha onze anos. O senhor lembra?
O padre engoliu em seco. Sim, lembrava. Ele ajudara a infligir-lhe o castigo.
Mas Pedro sabia que o que incomodava o padre não era qualquer espécie de sofrimento causado por aquele castigo, fosse o que lhe causara no paciente, fosse o que teria causado em sua mãe  se ela realmente tivesse sofrido com suas dores. O que incomodava o padre era a causa do castigo. Era a menção a um assunto que tanto o padre quanto sua mãe evitavam ao máximo, como se a simples idéia os aterrorizasse e lhes trouxesse a ameaça dos mais terríveis castigos.
O garoto tímido e reprimido, que nunca assistia televisão e não tinha amiguinhos na escola, que não fazia idéia de como se fazia sexo e nunca ouvira a palavra masturbação, fora flagrado por sua mãe quando os hormônios da pré-adolescência o levaram a descobrir novas sensações a partir da exploração do próprio corpo.
Horrorizada, a mãe chamara o padre. Primeiro, uma surra com um cinto de couro. Depois, um banho de água gelada, “para tirar a sujeira do corpo”. Então, haviam-no esfregado com sabão até esfolarem sua pele. Por fim, haviam-lhe amarrado as mãos às costas por uma semana. Uma semana inteira, na qual ele não saíra de seu quarto, nem para ir à escola. Uma semana comendo como bicho, enfiando o rosto num prato. Uma semana sem ir ao banheiro, urinando e defecando nas próprias roupas, e sem higiene  o padre dissera: “se a alma é impura, que o corpo então também apodreça.”
Ao cabo dessa semana horrível, haviam-lhe perguntado se jurava que jamais tornaria a cometer tal pecado. E o menino, embora ainda não fosse capaz de entender afinal de contas que pecado havia cometido, jurara por sua vida e por sua alma  juraria qualquer coisa para se livrar das aflições que lhe estavam impondo.
 E qual é o seu pecado desta vez, meu jovem?
Pedro baixou os olhos.
 Eu fiz de novo, padre. A mesma coisa.
O padre se levantou, furioso.
 Mas como? Não bastaram os castigos que eu e sua mãe lhe demos?
O jovem levantou o rosto e o encarou. O padre notou uma ligeira chama de ódio naquele olhar.
 Aqueles que poderiam ter me matado, Padre Alcides?
 Pois é pena que não o tivessem matado! Antes morto do que pecador, meu filho!
Desta vez o jovem se levantou.
 Não me chame de “meu filho”, padre. Guarde seus cuidados pastorais para as outras ovelhas de seu rebanho.
 O quê?
 O fato é que eu me cansei de tudo isso, padre. Cansei, quero ser normal, quero ser igual aos outros.
 E não te preocupas com o fato de que os outros são almas perdidas?
Pedro deu uma gargalhada.
 Almas perdidas, padre? O que o senhor sabe sobre almas perdidas? Pois eu lhe digo que uma alma só se perde quando o corpo deixa de se encontrar.
O padre pegou o guarda-chuva.
 Não sei por que me chamaste a esta hora da noite, garoto, mas estou vendo que não é para uma confissão arrependida. Pensa bem esta noite, e vai me procurar amanhã pela manhã. Aí, eu te passo uma penitência.
Pedro sentou-se. De repente, pareceu acalmar-se. Olhou-o de soslaio, sem encará-lo.
 Mas o senhor não está curioso, padre? perguntou, falando devagar.  Se não estou arrependido, não quer saber por que eu o chamei aqui, no meio da noite?
 Amanhã tu me contas.
Pedro suspirou.
 Está bem. Amanhã, o senhor pergunta para a minha mãe e ela lhe conta.
O padre já estava com a mão na maçaneta da porta, mas subitamente paralisou-se. Voltou-se lentamente e olhou para o jovem, cujo olhar ostentava um ar de desafio. Respirou fundo.
 Está bem  disse.  Conta-me por que tu me chamaste agora.
 Calma, padre. Tudo a seu tempo. Sente-se, por favor.
O padre obedeceu.
 Agora, espere aí, que eu vou chamar a minha mãe.
 Chamá-la? Mas por quê? Tu mesmo disseste que não era bom acordá-la...
 Mudei de idéia, padre. Espere aí.
Levantou-se, com gestos calculados, e subiu a escada que conduzia aos quartos no andar de cima da casa.
O padre se sentia desconfortável na cadeira. A casa permanecia num silêncio desolador. À medida que o jovem demorava para voltar, o padre foi-se sentindo cada vez mais angustiado. Um suor frio começou a escorrer de seu corpo. Sentia o ar pesado, opressivo. Quinze minutos. Vinte. O padre começou a sentir seu coração cada vez mais acelerado, sua cabeça começou a latejar. Meia hora. Quarenta minutos. Certo, era demais. Levantou-se para ir embora.
Súbito, um pressentimento...
Pegou o guarda-chuva e subiu as escadas que levavam ao segundo andar, procurando não fazer barulho. Prendeu a respiração. Esgueirou-se, encostando-se às paredes, até chegar à porta do quarto. Estava aberta. A luz estava acesa.
Foi então que viu, sobre a cama, algo que fez seu estômago se revirar e uma golfada de vômito subir-lhe à garganta, para ser imediatamente engolida, num reflexo que havia aprendido e automatizado durante longos anos fazendo encomendações.
Entrou, devagar, deixando cair o guarda-chuva. O corpo de Mariana jazia, completamente nu, sobre uma poça de sangue que empapava os lençóis. Mas não estava completo. Faltava-lhe a cabeça. Permaneceu estático por alguns segundos, horrorizado, agoniado, quando ouviu uma voz por trás de si:
 Dizem que uma mulher que dorme com um padre se transforma na mula-sem-cabeça.
Voltou-se. Era Pedro. Nem chegou a ver a janela aberta, denunciando que ele saíra do quarto por ali e voltara a entrar na casa pela porta do andar de baixo. Não estava em condições de raciocinar tanto assim. Mas foi capaz de perceber que nas mãos do jovem havia um machado ensangüentado.
 O que dizes? perguntou, trêmulo.
 O que digo? esbravejou o rapaz.  O senhor sabe muito bem o que eu estou dizendo! O senhor e essa cadela hipócrita! Por que não podiam ouvir falar em sexo? Por que não queriam que eu chegasse nem perto das garotas? Porque estavam atirando para cima de mim o nojo que tinham de si mesmos!
 Não sei do que estás falando  balbuciou o padre, enquanto recuava, tentando pôr-se longe do alcance do machado que o rapaz empunhava ameaçadoramente.
 Ah, o senhor não sabe? Pois então eu vou lhe contar! No dia em que meu pai teve um ataque do coração, eu estava sozinho em casa, com ele. Então, como eu não sabia o que fazer, fui buscar minha mãe. Ela tinha dito que ia à igreja. Só que eu fui à igreja e não a encontrei, padre. Então, fui procurá-la na sua casa, porque eu sabia que ela costumava ir à casa paroquial para conversar com o senhor. Só que, quando cheguei lá, por algum motivo, em vez de bater na porta, resolvi espiar por uma fresta na janela. E foi aí que vi o senhor em cima dela, resfolegando como um animal, e ela se contorcendo como uma meretriz, padre! Foi aí que eu entendi tudo!
O padre arregalou os olhos e o encarou, sem palavras.
 Primeiro, fiquei completamente desnorteado. Espero que o senhor seja capaz de entender que, nesse momento, meu mundo desabou. Tudo aquilo que o senhor e ela tinham me ensinado a vida inteira ruiu por terra. Voltei para casa, sentindo-me como se estivesse num sonho, num pesadelo. Então, quando cheguei, meu pai já estava morto. Aí, padre  encarou-o com sarcasmo , eu cuspi no cadáver daquele frouxo infeliz. E me refestelei ali mesmo, diante dele. Eu me masturbei, padre, diante do meu pai morto. Depois, quando caí em mim e vi o tamanho do meu desatino, o tamanho da porcaria que eu tinha feito... Resolvi acabar com vocês dois.
Dito isto, avançou, brandindo o machado.
O padre se desviou do golpe, num reflexo. Então, o instinto de sobrevivência o trouxe de volta a si, como se houvesse despertado de um transe. Atirou-se no chão, pegou o guarda-chuva e investiu contra o rapaz de inopino. Como não esperava um contra-ataque, o jovem deixou o machado cair. Rapidamente, o padre o pegou, e conseguiu cravá-lo no crânio do rapaz, que tombou, pesadamente, enquanto o sangue esguichava da ferida, já sem reação  embora seus olhos muito arregalados parecessem continuar chispando fagulhas de ódio e de ressentimento.
O Padre Alcides respirou fundo e olhou em volta. Sentia-se absurdamente frio e insensível. Por outro lado, não conseguia raciocinar direito. Mas achou que tinha condições de resolver aquela situação. Pensou em chamar a polícia, mas aí teria muita coisa para explicar, e não queria revelar seus segredos. Não naquela cidade, onde seus paroquianos o crucificariam. Isso para não falar no Bispo da Diocese.
Precisava de um álibi...
Retirou o machado da cabeça do rapaz, procurando não olhar para a massa ensangüentada que saiu de dentro de seu crânio junto com a lâmina. Limpou cuidadosamente as impressões digitais da arma. Provavelmente encontrariam impressões suas na casa, mas todo mundo sabia que ele a freqüentava. Saiu dali e entrou no carro. Dirigiu para fora da cidade, foi à casa de uma tia sua, e a convenceu a dizer a quem quer que perguntasse que ele chegara na tarde anterior. Ela não discutiu: sabia que seu sobrinho cometia lá os seus pecados, mas ela também tinha seus segredos, e não queria que o marido soubesse deles. E o padre não estava preso ao segredo de confissão: descobrira as escapadelas da tia por acaso, ao chegar para visitá-la no meio de uma tarde, e por ter espiado por uma fresta da janela  bem como o jovem Pedro descobrira seus próprios pecados.
No dia seguinte, resolveu voltar à sua cidade. Dirigia devagar, cautelosamente. Não queria ser parado pela polícia rodoviária. Tudo o que queria era distância da polícia. Justamente por isso, escolheu viajar ao meio-dia, quando sabia que os policiais estavam mais interessados em seu almoço do que em fiscalizar os carros que transitavam pela estrada.
Porém, à medida que o sol esquentava o interior de seu carro, começou a sentir um cheiro estranho  estranho e vagamente familiar, que foi-se tornando mais intenso...
Já estava a ponto de identificar a que lembranças o odor desagradável o remetia quando, para seu azar, ao passar por um posto da polícia, um guarda rodoviário lhe fez sinal para que parasse. Estacionou, a contragosto, abriu o vidro e, enquanto procurava os documentos que o policial lhe pedia, este fez uma careta.
 O que o senhor leva aí? perguntou.
 Hem? Não levo nada.
 Padre... Por acaso o senhor está levando algum produto alimentício?
O padre já estava indignado por ter sido parado, e irritou-se ainda mais.
 Ora, mas é claro que não! disse.
 O senhor sabe que não pode transportar certas mercadorias sem cumprir com certas exigências legais...
 Por favor, rapaz, eu sou um sacerdote! Não estou levando nenhuma mercadoria.
O homem aspirou novamente o cheiro estranho.
 Tudo bem. Mas será que o senhor poderia abrir o porta-malas?
O padre desceu do carro, contrariado, e aproximou-se do porta-malas.
Quando foi usar a chave para abri-lo, percebeu que não seria necessário. Estava destrancado. Então, lembrou-se de que, há alguns dias, quando fora visitar Mariana, perdera  ou lhe haviam sido roubadas  todas as suas chaves, inclusive a do carro. Como tinha cópias de todas, não dera importância. Afinal, achara que, se estivesse perdida dentro da casa, mais cedo ou mais tarde apareceria.
Ao perceber-lhe a hesitação, o guarda rodoviário tomou a iniciativa de abrir o porta-malas. Primeiro, o padre empalideceu e se paralisou completamente. Depois, sentiu uma tontura e não pôde controlar uma golfada de vômito que parecia contida há muito tempo.
Dentro do porta-malas, com os olhos e a boca abertos, apoplética e branca como cera, a cabeça loura de Mariana já começava a apodrecer...


Nota: esta é uma obra de ficção, que não retrata necessariamente minhas crenças, idéias ou opiniões; qualquer semelhança com fatos ou pessoas reais terá sido mera coincidência

As Raízes da Morte

Por Luciano Barreto

Minhas fossas oculares estão secas.
Estou a chafurdar no bizarro e escuro pântano.
Nem portando este lume, cuja lâmpada está acessa,
Consigo ver muita coisa na imensa escuridão.

Temeroso, sigo em frente.
O chapéu cravado na cabeça.
O rifle, em riste, na mão direita.
O medo se aproxima com um terrível som de folhas a farfalhar

Lembrando da arma, penso:
“Para aonde correr? Eu vim caçar!”
“Ficar e morrer? Eu vim matar!”

Vejo uma árvore antiga fincada no lodo.
Estrategicamente, me aproximo e para minha loucura
Sou arrebatado por imensas raízes para o fundo do pântano.

quarta-feira, dezembro 12, 2007

A ÚLTIMA CEIA

ESTA OBRA É MERAMENTE FICÇÃO E NÃO RETRATA DE FORMA NENHUMA A CRENÇA DO AUTOR SOBRE O ASSUNTO

Por Cayus Marcws pocotirios

Meu rabi faleceu por volta da hora nona. Houve muitas catástrofes naturais e diversos fatos ocorreram durante sua crucificação, bem como a ressurreição no terceiro dia. Ele revelou-nos grandes verdades que hoje distribuímos com o mundo todo. Más há muito mais do que simplesmente contamos nas cartas e evangelhos que escrevemos. Meu pai! Sei que jurei a meus irmãos jamais falar sobre isso outra vez, mas não posso deixar que estes segredos morram comigo. Já estou velho, e aqui nesta prisão não me resta muita coisa além de minhas orações, leituras e meus escritos pessoais. Por isso decidi redigir esta última confissão e guarda-la no alforje carregado pelo demônio que andou ao lado de Deus nesta Terra. Ele e este pergaminho serão as últimas testemunhas deste episódio.
Estávamos na mesa, pouco antes da santa ceia aguardando o partir do pão quando o rabi nos anunciou aquela fatídica sentença: UM DE VÓS ME TRAIRÁ. Todos ficamos atemorizados com aquela afirmação tão inesperada, mesmo habituados com as parábolas que geralmente nos propunha. Mas antes que eu pudesse fazer muitas conjecturas, notei que Simão sinalizava alguma coisa para mim. Queria saber o que a maioria também queria.
Reclinei-me discretamente sobre seu peito e perguntei delicadamente: “ Quem, mestre?” Ele, sempre tão doce, olhou-me amistosamente e sorriu. Partiu um bocado de pão enquanto conversava sussurradamente com Iscariotes , deixando-me ali. Ansioso! Vívido por uma resposta a que dar aos meus irmãos. “Aquele a quem eu der o pedaço de pão umedecido, o é.” Sua declaração foi seca e direta. Vi ele molhar o bocado e entrega-lo a Iscariotes. “O que tens de fazer, faze-o depressa.” Pronunciou dessa vez, claro e audívelmente. Novamente ficamos confusos.
Iscariotes levantou-se rapidamente e saiu, levando consigo o alforje que sempre carregava e me deixando mais perturbado ainda. Pensamos no momento que faria algum trabalho em nome do mestre, já que era encarregado das finanças. Hoje sabemos que já estava destinado a mudar a história. O rabi terminou a ceia e saímos em direção ao jardim, perto ao ribeiro de Sedrom. Fomos surpreendidos no gólgota por Iscariotes novamente, mas agora estava acompanhado pelos escribas e fariseus. E pensar que ousou traí-lo com um beijo!
Depois de nosso senhor ser levado daquela forma, partimos contristados e furiosos ao mesmo tempo. Tudo o que eu queria era encontrar Iscariotes e fazê-lo pagar. Mesmo o rabi tendo ido pacificamente, não podia aceitar o fato dele ter sido vendido por míseras moedas de prata. Quanto vale o sangue de um Deus? Encontrei-me com o traidor já ao pé da forca, logo depois de ir ao templo e descobrir que tinha devolvido aos sumo sacerdotes o salário de seu crime.
Foi uma cena horrível. O corpo balançava-se vagarosamente debaixo de um carvalho enquanto a cabeça encurvada demonstrava que deveria ter sofrido muito. Seus olhos estavam abertos e fixaram-se em mim. Corri desesperadamente para o mais longe que consegui daquele quadro de horror. Aquele lugar ficaria conhecido como campo de sangue. Mas não foi a última vez que o vi.
Logo após o último suspiro do mestre, fui visitar seu corpo ainda quando estava naquela cruz outra vez. Tinha saído dali momentos antes quando me confiara sua mãe para ser minha própria mãe ( sinal que mesmo na dor se importava com as pessoas). Decidi vê-lo mais esta hora para lembrar-me das mãos que um dia curaram tanta gente. Agora não se moviam mais. O lugar estava quase deserto. A grande multidão se dispersara e os soldados haviam se retirado após quebrarem as pernas dos outros dois homens ao seu lado, mas haviam só perfurado seu lado com uma lança. Um centurião próximo a ele murmurou algo como ele verdadeiramente ser o filho de Deus e também caminhou para longe do local por alguns instates. Fiquei ali, a seus pés,observando-o. Pensando em tudo o que havia acontecido até ali. Uma vez mais vi Judas Iscariotes.
Ele se arrastava por entre algumas árvores que rodeavam o lugar, se aproximando desgrenhosamente. Vinha cambaleando como um ébrio, a cabeça ainda baixa, as vestes rasgadas, o corpo todo dilacerado. Parecia que havia sido atacado por animais do campo. Eu fiquei imóvel, sem reação diante da aberração que vi diante de mim. Não eram olhos humanos que me contemplavam. Um demônio se apossou daquele corpo para vir me atormentar. Ele abriu a boca que cheirava a carniça, e titubeou algumas frases funestamente:
- Deixe-me passar. Deixe-me passar para beber seu sangue. É minha sina. Tenho que beber o sangue do rabi para pagar por meus crimes. Não vou feri-lo João, mas deixe-me beber do sangue que rega a terra.
Eu não ousava pronunciar um único som diante daquela aberração. O máximo que fiz foi dar dois passos para o lado e assisti-lo rastejar até o corpo na cruz. Ele pareceu soerguer a cabeça dificultosamente, tentado alçar a visão até a face de Jesus. Algo como lágrimas rolaram daqueles negros olhos enquanto fazia esse esforço. Mas logo voltou-se para baixo e começou a lamber as gotas que manchavam a areia umedecida. Um ritual macabro que nunca havia presenciado antes. Ele se movia como um chacal que se alimenta da carcaça dos animais mortos na floresta. Sorvia prazerosamente aquela mistura heterogênea pulsante das entranhas da terra. E a cada nova tragada, a cada nova investida sua, parecia revigorar-se milagrosamente. Quando olhei pela última vez estava quase de pé, já sem tantos machucados. Nem apresentava tantos hematomas no corpo. Foi quando não tive mais forças e caí esmaecido sobre as pedras frias do monte chamado caveira.
Fui despertado pelos guardas que retornavam para tirar os corpos antes do sábado, e antes de mais nada disparei para encontrar-me com os outros. Quando me reuni a eles, relatei passo a passo minha caminhada desde o getsêmani até ali. Todos me olhavam estupefatos, pensando que havia ficado louco. Mas como prova havia em meus braços o alforje que Judas sempre carregava. Era um presente dado a ele por Jesus, e tinha-o abandonado ao meu lado quando acordei. Agora estava em meu domínio para convencê-los de que não foram visões simplesmente que tive. Dentro dele constavam uma corda rompida em forma de forca e uma profecia escrita também a sangue, que dizia: O QUE TENS DE FAZER, FAZE-O DEPRESSA!
Alguns deles acreditaram em mim. Outros acusaram-me de mentiroso e ludibriador, mas o fato é que me alertaram para que jamais falasse a respeito disso novamente com ninguém. Ajuntamos aqueles malditos objetos e fizemos uma fogueira. Apenas conservei comigo este alforje, alegando ser a última coisa de elo entre nós e o mestre de material ainda em nosso meio. Enquanto eu e Pedro víamos a fumaça se expandindo no céu, ao longe surgiram Maria Madalena juntamente com outras mulheres que diziam ter visto o rabi ressuscitar dentre os mortos. Nos olhamos discretamente mais uma vez, e ele passou o dedo entre os lábios me pedindo silêncio. Corremos com elas para alertar o grupo. Depois desse dia, nunca mais falamos ou discutimos sobre isso.
Esta, filhinhos, é a verdadeira história de como surgiu o primeiro imortal amaldiçoado que pisou sobre a face da Terra. Hoje há boatos de que existem seres que andam pela noite sugando a vida das pessoas através do sangue. Chamam-nas de vampiros. Mas quando me chegam aos ouvidos tais histórias, tudo que consigo me lembrar é de Judas Iscariotes e o que o mestre lhe advertira durante a última ceia.