sábado, dezembro 15, 2007

A Cabeça da Mula

Por Mauren

CONTO COM LEVE APELO ERÓTICO

O Padre Alcides desligou o telefone e se vestiu, a contragosto, mas apressado. Sabia que a questão era urgente. Vestiu uma capa por cima da batina, pegou o guarda-chuva e saiu.
Enquanto dirigia o carro pelas ruas estreitas daquela pequena cidade, pensava no que ouviria quando chegasse na casa de Pedro. O jovem parecia bastante perturbado. Mesmo assim, o Padre Alcides não sairia de casa no meio da noite, debaixo daquela chuva torrencial, se não fosse a grande amizade que nutria com Mariana, a mãe do garoto, sua paroquiana há muito tempo – o receio em desgostá-la era o que o movia, muito, muito mais do que a preocupação com a mente abalada do rapaz.
Pedro tivera uma educação muito rígida. Repressiva, até. Não que seu pai tivesse prestado para tanto. O marido de Mariana era um homem pusilânime, um fraco, quase um covarde. Mas a mãe, seguindo os conselhos do padre, esforçara-se para torná-lo um homem puro e livre de vícios. Porém, desde o dia em que o pai de Pedro morrera, há mais ou menos um mês, o garoto estava bastante transtornado. Praticamente não falava, comia muito pouco, quase não saía do sobrado em que morava com a mãe. Quando o pai de Pedro fora vítima de um ataque cardíaco, o jovem estava sozinho em casa com ele. O padre desconfiava que o rapaz se sentisse culpado, de alguma forma. Ou que tivesse ficado traumatizado com aquela situação horrível.
Quando bateu na porta, esperava que quem viesse abrir fosse Mariana. A mãe de Pedro era uma mulher ainda bastante bonita. Tinha pele muito clara, como porcelana, cabelos cor de trigo e olhos muito azuis. Quando usava um véu para ir à igreja, o padre a achava parecida com uma imagem de santa. E ele sabia que fora assim que Pedro se acostumara a vê-la: como uma santa. A personificação da pureza. O jovem havia inclusive composto poemas para sua mãe, onde a comparava com as mártires da Igreja, e o padre acreditava que ele só não a colocava no mesmo patamar da Virgem Maria por não se considerar digno de ser filho de Nossa Senhora.
Mas quem abriu a porta foi o próprio Pedro. O padre o olhou com interesse. O jovem tinha o olhar perdido, e lhe pareceu que tremia ligeiramente, mas seus gestos eram calmos e estudados. O rapaz o convidou para entrar e lhe pediu que se sentasse.
 Pois bem  disse o Padre Alcides, ao se acomodar.  Vim o mais rápido que pude. De que precisas?
 Preciso que o senhor me ouça, padre  respondeu o jovem.  Em confissão.
 Certo, meu jovem. Mas não poderias ter esperado até amanhã e ido à igreja?
Súbito, o rapaz tomou-lhe as mãos.
 Não, padre. Eu não agüentaria esperar até amanhã. Eu precisava falar com o senhor hoje. Agora.
Alguma coisa na atitude do rapaz o inquietou. O padre olhou em volta.
 Onde está a tua mãe? perguntou.
 No quarto. Dormindo.
 Ela não sabe que tu me telefonaste?
 Não faz idéia, padre.  Suspirou.  Mas eu precisava, eu precisava muito conversar com o senhor hoje, e não queria que ela soubesse.
O padre o encarou com severidade e retirou as mãos das dele.
 Não deverias esconder coisa alguma da tua mãe  disse.
 Oh, padre, mas eu não poderia lhe contar! Não quero vê-la sofrer de novo, como sofreu quando teve de me castigar.
 Quando teve de te castigar?
 Sim, padre. Aquela vez, quando eu tinha onze anos. O senhor lembra?
O padre engoliu em seco. Sim, lembrava. Ele ajudara a infligir-lhe o castigo.
Mas Pedro sabia que o que incomodava o padre não era qualquer espécie de sofrimento causado por aquele castigo, fosse o que lhe causara no paciente, fosse o que teria causado em sua mãe  se ela realmente tivesse sofrido com suas dores. O que incomodava o padre era a causa do castigo. Era a menção a um assunto que tanto o padre quanto sua mãe evitavam ao máximo, como se a simples idéia os aterrorizasse e lhes trouxesse a ameaça dos mais terríveis castigos.
O garoto tímido e reprimido, que nunca assistia televisão e não tinha amiguinhos na escola, que não fazia idéia de como se fazia sexo e nunca ouvira a palavra masturbação, fora flagrado por sua mãe quando os hormônios da pré-adolescência o levaram a descobrir novas sensações a partir da exploração do próprio corpo.
Horrorizada, a mãe chamara o padre. Primeiro, uma surra com um cinto de couro. Depois, um banho de água gelada, “para tirar a sujeira do corpo”. Então, haviam-no esfregado com sabão até esfolarem sua pele. Por fim, haviam-lhe amarrado as mãos às costas por uma semana. Uma semana inteira, na qual ele não saíra de seu quarto, nem para ir à escola. Uma semana comendo como bicho, enfiando o rosto num prato. Uma semana sem ir ao banheiro, urinando e defecando nas próprias roupas, e sem higiene  o padre dissera: “se a alma é impura, que o corpo então também apodreça.”
Ao cabo dessa semana horrível, haviam-lhe perguntado se jurava que jamais tornaria a cometer tal pecado. E o menino, embora ainda não fosse capaz de entender afinal de contas que pecado havia cometido, jurara por sua vida e por sua alma  juraria qualquer coisa para se livrar das aflições que lhe estavam impondo.
 E qual é o seu pecado desta vez, meu jovem?
Pedro baixou os olhos.
 Eu fiz de novo, padre. A mesma coisa.
O padre se levantou, furioso.
 Mas como? Não bastaram os castigos que eu e sua mãe lhe demos?
O jovem levantou o rosto e o encarou. O padre notou uma ligeira chama de ódio naquele olhar.
 Aqueles que poderiam ter me matado, Padre Alcides?
 Pois é pena que não o tivessem matado! Antes morto do que pecador, meu filho!
Desta vez o jovem se levantou.
 Não me chame de “meu filho”, padre. Guarde seus cuidados pastorais para as outras ovelhas de seu rebanho.
 O quê?
 O fato é que eu me cansei de tudo isso, padre. Cansei, quero ser normal, quero ser igual aos outros.
 E não te preocupas com o fato de que os outros são almas perdidas?
Pedro deu uma gargalhada.
 Almas perdidas, padre? O que o senhor sabe sobre almas perdidas? Pois eu lhe digo que uma alma só se perde quando o corpo deixa de se encontrar.
O padre pegou o guarda-chuva.
 Não sei por que me chamaste a esta hora da noite, garoto, mas estou vendo que não é para uma confissão arrependida. Pensa bem esta noite, e vai me procurar amanhã pela manhã. Aí, eu te passo uma penitência.
Pedro sentou-se. De repente, pareceu acalmar-se. Olhou-o de soslaio, sem encará-lo.
 Mas o senhor não está curioso, padre? perguntou, falando devagar.  Se não estou arrependido, não quer saber por que eu o chamei aqui, no meio da noite?
 Amanhã tu me contas.
Pedro suspirou.
 Está bem. Amanhã, o senhor pergunta para a minha mãe e ela lhe conta.
O padre já estava com a mão na maçaneta da porta, mas subitamente paralisou-se. Voltou-se lentamente e olhou para o jovem, cujo olhar ostentava um ar de desafio. Respirou fundo.
 Está bem  disse.  Conta-me por que tu me chamaste agora.
 Calma, padre. Tudo a seu tempo. Sente-se, por favor.
O padre obedeceu.
 Agora, espere aí, que eu vou chamar a minha mãe.
 Chamá-la? Mas por quê? Tu mesmo disseste que não era bom acordá-la...
 Mudei de idéia, padre. Espere aí.
Levantou-se, com gestos calculados, e subiu a escada que conduzia aos quartos no andar de cima da casa.
O padre se sentia desconfortável na cadeira. A casa permanecia num silêncio desolador. À medida que o jovem demorava para voltar, o padre foi-se sentindo cada vez mais angustiado. Um suor frio começou a escorrer de seu corpo. Sentia o ar pesado, opressivo. Quinze minutos. Vinte. O padre começou a sentir seu coração cada vez mais acelerado, sua cabeça começou a latejar. Meia hora. Quarenta minutos. Certo, era demais. Levantou-se para ir embora.
Súbito, um pressentimento...
Pegou o guarda-chuva e subiu as escadas que levavam ao segundo andar, procurando não fazer barulho. Prendeu a respiração. Esgueirou-se, encostando-se às paredes, até chegar à porta do quarto. Estava aberta. A luz estava acesa.
Foi então que viu, sobre a cama, algo que fez seu estômago se revirar e uma golfada de vômito subir-lhe à garganta, para ser imediatamente engolida, num reflexo que havia aprendido e automatizado durante longos anos fazendo encomendações.
Entrou, devagar, deixando cair o guarda-chuva. O corpo de Mariana jazia, completamente nu, sobre uma poça de sangue que empapava os lençóis. Mas não estava completo. Faltava-lhe a cabeça. Permaneceu estático por alguns segundos, horrorizado, agoniado, quando ouviu uma voz por trás de si:
 Dizem que uma mulher que dorme com um padre se transforma na mula-sem-cabeça.
Voltou-se. Era Pedro. Nem chegou a ver a janela aberta, denunciando que ele saíra do quarto por ali e voltara a entrar na casa pela porta do andar de baixo. Não estava em condições de raciocinar tanto assim. Mas foi capaz de perceber que nas mãos do jovem havia um machado ensangüentado.
 O que dizes? perguntou, trêmulo.
 O que digo? esbravejou o rapaz.  O senhor sabe muito bem o que eu estou dizendo! O senhor e essa cadela hipócrita! Por que não podiam ouvir falar em sexo? Por que não queriam que eu chegasse nem perto das garotas? Porque estavam atirando para cima de mim o nojo que tinham de si mesmos!
 Não sei do que estás falando  balbuciou o padre, enquanto recuava, tentando pôr-se longe do alcance do machado que o rapaz empunhava ameaçadoramente.
 Ah, o senhor não sabe? Pois então eu vou lhe contar! No dia em que meu pai teve um ataque do coração, eu estava sozinho em casa, com ele. Então, como eu não sabia o que fazer, fui buscar minha mãe. Ela tinha dito que ia à igreja. Só que eu fui à igreja e não a encontrei, padre. Então, fui procurá-la na sua casa, porque eu sabia que ela costumava ir à casa paroquial para conversar com o senhor. Só que, quando cheguei lá, por algum motivo, em vez de bater na porta, resolvi espiar por uma fresta na janela. E foi aí que vi o senhor em cima dela, resfolegando como um animal, e ela se contorcendo como uma meretriz, padre! Foi aí que eu entendi tudo!
O padre arregalou os olhos e o encarou, sem palavras.
 Primeiro, fiquei completamente desnorteado. Espero que o senhor seja capaz de entender que, nesse momento, meu mundo desabou. Tudo aquilo que o senhor e ela tinham me ensinado a vida inteira ruiu por terra. Voltei para casa, sentindo-me como se estivesse num sonho, num pesadelo. Então, quando cheguei, meu pai já estava morto. Aí, padre  encarou-o com sarcasmo , eu cuspi no cadáver daquele frouxo infeliz. E me refestelei ali mesmo, diante dele. Eu me masturbei, padre, diante do meu pai morto. Depois, quando caí em mim e vi o tamanho do meu desatino, o tamanho da porcaria que eu tinha feito... Resolvi acabar com vocês dois.
Dito isto, avançou, brandindo o machado.
O padre se desviou do golpe, num reflexo. Então, o instinto de sobrevivência o trouxe de volta a si, como se houvesse despertado de um transe. Atirou-se no chão, pegou o guarda-chuva e investiu contra o rapaz de inopino. Como não esperava um contra-ataque, o jovem deixou o machado cair. Rapidamente, o padre o pegou, e conseguiu cravá-lo no crânio do rapaz, que tombou, pesadamente, enquanto o sangue esguichava da ferida, já sem reação  embora seus olhos muito arregalados parecessem continuar chispando fagulhas de ódio e de ressentimento.
O Padre Alcides respirou fundo e olhou em volta. Sentia-se absurdamente frio e insensível. Por outro lado, não conseguia raciocinar direito. Mas achou que tinha condições de resolver aquela situação. Pensou em chamar a polícia, mas aí teria muita coisa para explicar, e não queria revelar seus segredos. Não naquela cidade, onde seus paroquianos o crucificariam. Isso para não falar no Bispo da Diocese.
Precisava de um álibi...
Retirou o machado da cabeça do rapaz, procurando não olhar para a massa ensangüentada que saiu de dentro de seu crânio junto com a lâmina. Limpou cuidadosamente as impressões digitais da arma. Provavelmente encontrariam impressões suas na casa, mas todo mundo sabia que ele a freqüentava. Saiu dali e entrou no carro. Dirigiu para fora da cidade, foi à casa de uma tia sua, e a convenceu a dizer a quem quer que perguntasse que ele chegara na tarde anterior. Ela não discutiu: sabia que seu sobrinho cometia lá os seus pecados, mas ela também tinha seus segredos, e não queria que o marido soubesse deles. E o padre não estava preso ao segredo de confissão: descobrira as escapadelas da tia por acaso, ao chegar para visitá-la no meio de uma tarde, e por ter espiado por uma fresta da janela  bem como o jovem Pedro descobrira seus próprios pecados.
No dia seguinte, resolveu voltar à sua cidade. Dirigia devagar, cautelosamente. Não queria ser parado pela polícia rodoviária. Tudo o que queria era distância da polícia. Justamente por isso, escolheu viajar ao meio-dia, quando sabia que os policiais estavam mais interessados em seu almoço do que em fiscalizar os carros que transitavam pela estrada.
Porém, à medida que o sol esquentava o interior de seu carro, começou a sentir um cheiro estranho  estranho e vagamente familiar, que foi-se tornando mais intenso...
Já estava a ponto de identificar a que lembranças o odor desagradável o remetia quando, para seu azar, ao passar por um posto da polícia, um guarda rodoviário lhe fez sinal para que parasse. Estacionou, a contragosto, abriu o vidro e, enquanto procurava os documentos que o policial lhe pedia, este fez uma careta.
 O que o senhor leva aí? perguntou.
 Hem? Não levo nada.
 Padre... Por acaso o senhor está levando algum produto alimentício?
O padre já estava indignado por ter sido parado, e irritou-se ainda mais.
 Ora, mas é claro que não! disse.
 O senhor sabe que não pode transportar certas mercadorias sem cumprir com certas exigências legais...
 Por favor, rapaz, eu sou um sacerdote! Não estou levando nenhuma mercadoria.
O homem aspirou novamente o cheiro estranho.
 Tudo bem. Mas será que o senhor poderia abrir o porta-malas?
O padre desceu do carro, contrariado, e aproximou-se do porta-malas.
Quando foi usar a chave para abri-lo, percebeu que não seria necessário. Estava destrancado. Então, lembrou-se de que, há alguns dias, quando fora visitar Mariana, perdera  ou lhe haviam sido roubadas  todas as suas chaves, inclusive a do carro. Como tinha cópias de todas, não dera importância. Afinal, achara que, se estivesse perdida dentro da casa, mais cedo ou mais tarde apareceria.
Ao perceber-lhe a hesitação, o guarda rodoviário tomou a iniciativa de abrir o porta-malas. Primeiro, o padre empalideceu e se paralisou completamente. Depois, sentiu uma tontura e não pôde controlar uma golfada de vômito que parecia contida há muito tempo.
Dentro do porta-malas, com os olhos e a boca abertos, apoplética e branca como cera, a cabeça loura de Mariana já começava a apodrecer...


Nota: esta é uma obra de ficção, que não retrata necessariamente minhas crenças, idéias ou opiniões; qualquer semelhança com fatos ou pessoas reais terá sido mera coincidência

As Raízes da Morte

Por Luciano Barreto

Minhas fossas oculares estão secas.
Estou a chafurdar no bizarro e escuro pântano.
Nem portando este lume, cuja lâmpada está acessa,
Consigo ver muita coisa na imensa escuridão.

Temeroso, sigo em frente.
O chapéu cravado na cabeça.
O rifle, em riste, na mão direita.
O medo se aproxima com um terrível som de folhas a farfalhar

Lembrando da arma, penso:
“Para aonde correr? Eu vim caçar!”
“Ficar e morrer? Eu vim matar!”

Vejo uma árvore antiga fincada no lodo.
Estrategicamente, me aproximo e para minha loucura
Sou arrebatado por imensas raízes para o fundo do pântano.

quarta-feira, dezembro 12, 2007

A ÚLTIMA CEIA

ESTA OBRA É MERAMENTE FICÇÃO E NÃO RETRATA DE FORMA NENHUMA A CRENÇA DO AUTOR SOBRE O ASSUNTO

Por Cayus Marcws pocotirios

Meu rabi faleceu por volta da hora nona. Houve muitas catástrofes naturais e diversos fatos ocorreram durante sua crucificação, bem como a ressurreição no terceiro dia. Ele revelou-nos grandes verdades que hoje distribuímos com o mundo todo. Más há muito mais do que simplesmente contamos nas cartas e evangelhos que escrevemos. Meu pai! Sei que jurei a meus irmãos jamais falar sobre isso outra vez, mas não posso deixar que estes segredos morram comigo. Já estou velho, e aqui nesta prisão não me resta muita coisa além de minhas orações, leituras e meus escritos pessoais. Por isso decidi redigir esta última confissão e guarda-la no alforje carregado pelo demônio que andou ao lado de Deus nesta Terra. Ele e este pergaminho serão as últimas testemunhas deste episódio.
Estávamos na mesa, pouco antes da santa ceia aguardando o partir do pão quando o rabi nos anunciou aquela fatídica sentença: UM DE VÓS ME TRAIRÁ. Todos ficamos atemorizados com aquela afirmação tão inesperada, mesmo habituados com as parábolas que geralmente nos propunha. Mas antes que eu pudesse fazer muitas conjecturas, notei que Simão sinalizava alguma coisa para mim. Queria saber o que a maioria também queria.
Reclinei-me discretamente sobre seu peito e perguntei delicadamente: “ Quem, mestre?” Ele, sempre tão doce, olhou-me amistosamente e sorriu. Partiu um bocado de pão enquanto conversava sussurradamente com Iscariotes , deixando-me ali. Ansioso! Vívido por uma resposta a que dar aos meus irmãos. “Aquele a quem eu der o pedaço de pão umedecido, o é.” Sua declaração foi seca e direta. Vi ele molhar o bocado e entrega-lo a Iscariotes. “O que tens de fazer, faze-o depressa.” Pronunciou dessa vez, claro e audívelmente. Novamente ficamos confusos.
Iscariotes levantou-se rapidamente e saiu, levando consigo o alforje que sempre carregava e me deixando mais perturbado ainda. Pensamos no momento que faria algum trabalho em nome do mestre, já que era encarregado das finanças. Hoje sabemos que já estava destinado a mudar a história. O rabi terminou a ceia e saímos em direção ao jardim, perto ao ribeiro de Sedrom. Fomos surpreendidos no gólgota por Iscariotes novamente, mas agora estava acompanhado pelos escribas e fariseus. E pensar que ousou traí-lo com um beijo!
Depois de nosso senhor ser levado daquela forma, partimos contristados e furiosos ao mesmo tempo. Tudo o que eu queria era encontrar Iscariotes e fazê-lo pagar. Mesmo o rabi tendo ido pacificamente, não podia aceitar o fato dele ter sido vendido por míseras moedas de prata. Quanto vale o sangue de um Deus? Encontrei-me com o traidor já ao pé da forca, logo depois de ir ao templo e descobrir que tinha devolvido aos sumo sacerdotes o salário de seu crime.
Foi uma cena horrível. O corpo balançava-se vagarosamente debaixo de um carvalho enquanto a cabeça encurvada demonstrava que deveria ter sofrido muito. Seus olhos estavam abertos e fixaram-se em mim. Corri desesperadamente para o mais longe que consegui daquele quadro de horror. Aquele lugar ficaria conhecido como campo de sangue. Mas não foi a última vez que o vi.
Logo após o último suspiro do mestre, fui visitar seu corpo ainda quando estava naquela cruz outra vez. Tinha saído dali momentos antes quando me confiara sua mãe para ser minha própria mãe ( sinal que mesmo na dor se importava com as pessoas). Decidi vê-lo mais esta hora para lembrar-me das mãos que um dia curaram tanta gente. Agora não se moviam mais. O lugar estava quase deserto. A grande multidão se dispersara e os soldados haviam se retirado após quebrarem as pernas dos outros dois homens ao seu lado, mas haviam só perfurado seu lado com uma lança. Um centurião próximo a ele murmurou algo como ele verdadeiramente ser o filho de Deus e também caminhou para longe do local por alguns instates. Fiquei ali, a seus pés,observando-o. Pensando em tudo o que havia acontecido até ali. Uma vez mais vi Judas Iscariotes.
Ele se arrastava por entre algumas árvores que rodeavam o lugar, se aproximando desgrenhosamente. Vinha cambaleando como um ébrio, a cabeça ainda baixa, as vestes rasgadas, o corpo todo dilacerado. Parecia que havia sido atacado por animais do campo. Eu fiquei imóvel, sem reação diante da aberração que vi diante de mim. Não eram olhos humanos que me contemplavam. Um demônio se apossou daquele corpo para vir me atormentar. Ele abriu a boca que cheirava a carniça, e titubeou algumas frases funestamente:
- Deixe-me passar. Deixe-me passar para beber seu sangue. É minha sina. Tenho que beber o sangue do rabi para pagar por meus crimes. Não vou feri-lo João, mas deixe-me beber do sangue que rega a terra.
Eu não ousava pronunciar um único som diante daquela aberração. O máximo que fiz foi dar dois passos para o lado e assisti-lo rastejar até o corpo na cruz. Ele pareceu soerguer a cabeça dificultosamente, tentado alçar a visão até a face de Jesus. Algo como lágrimas rolaram daqueles negros olhos enquanto fazia esse esforço. Mas logo voltou-se para baixo e começou a lamber as gotas que manchavam a areia umedecida. Um ritual macabro que nunca havia presenciado antes. Ele se movia como um chacal que se alimenta da carcaça dos animais mortos na floresta. Sorvia prazerosamente aquela mistura heterogênea pulsante das entranhas da terra. E a cada nova tragada, a cada nova investida sua, parecia revigorar-se milagrosamente. Quando olhei pela última vez estava quase de pé, já sem tantos machucados. Nem apresentava tantos hematomas no corpo. Foi quando não tive mais forças e caí esmaecido sobre as pedras frias do monte chamado caveira.
Fui despertado pelos guardas que retornavam para tirar os corpos antes do sábado, e antes de mais nada disparei para encontrar-me com os outros. Quando me reuni a eles, relatei passo a passo minha caminhada desde o getsêmani até ali. Todos me olhavam estupefatos, pensando que havia ficado louco. Mas como prova havia em meus braços o alforje que Judas sempre carregava. Era um presente dado a ele por Jesus, e tinha-o abandonado ao meu lado quando acordei. Agora estava em meu domínio para convencê-los de que não foram visões simplesmente que tive. Dentro dele constavam uma corda rompida em forma de forca e uma profecia escrita também a sangue, que dizia: O QUE TENS DE FAZER, FAZE-O DEPRESSA!
Alguns deles acreditaram em mim. Outros acusaram-me de mentiroso e ludibriador, mas o fato é que me alertaram para que jamais falasse a respeito disso novamente com ninguém. Ajuntamos aqueles malditos objetos e fizemos uma fogueira. Apenas conservei comigo este alforje, alegando ser a última coisa de elo entre nós e o mestre de material ainda em nosso meio. Enquanto eu e Pedro víamos a fumaça se expandindo no céu, ao longe surgiram Maria Madalena juntamente com outras mulheres que diziam ter visto o rabi ressuscitar dentre os mortos. Nos olhamos discretamente mais uma vez, e ele passou o dedo entre os lábios me pedindo silêncio. Corremos com elas para alertar o grupo. Depois desse dia, nunca mais falamos ou discutimos sobre isso.
Esta, filhinhos, é a verdadeira história de como surgiu o primeiro imortal amaldiçoado que pisou sobre a face da Terra. Hoje há boatos de que existem seres que andam pela noite sugando a vida das pessoas através do sangue. Chamam-nas de vampiros. Mas quando me chegam aos ouvidos tais histórias, tudo que consigo me lembrar é de Judas Iscariotes e o que o mestre lhe advertira durante a última ceia.

sábado, novembro 24, 2007

A Recompensa das Trevas

Por Mauren

A Dona Leucádia era uma senhora idosa. Vivia isolada e, quem passava pela frente de sua casinha, à noite, jurava ouvir alguns barulhos estranhos, como grunhidos. Naquela pequena cidade do interior, ainda havia bastante preconceito, e eu observava como as pessoas a olhavam, com um misto de curiosidade e de desprezo, sempre que ela ia à feira, ao banco, enfim, nas raras vezes em que ela saía para a rua.
Eu também me sentia um pouco deslocada naquele lugar. Parecia que as pessoas me olhavam com estranheza. Embora eu não tivesse absolutamente nada de anormal – pelo menos, nada que devesse ser considerado anormal em pleno século XXI , as pessoas daquele lugarejo tinham uma certa resistência comigo pelo simples fato de eu ser forasteira e de haver morado na cidade grande. Por isso, fui desenvolvendo uma certa simpatia – aliás, empatia  por aquela senhora. Até que, um dia, resolvi me oferecer para ajudá-la a carregar suas compras até sua casa. Ela espantou-se. Primeiro, achei que fosse por não estar acostumada a gentilezas. Mas o olhar que ela me lançou  um olhar profundo, que parecia vir de dentro de sua alma e passar por seus tristes olhos azuis  arrepiou-me um pouco. Ela fez um silêncio significativo e me encarou com um ar de censura que chegou a me desconcertar.
 Tu jamais deverias dar tanta confiança a uma estranha  disse, finalmente, em voz baixa.
 Desculpe, senhora  respondi.  Eu não quis assustá-la, eu só queria ajudar...
 Eu sei, minha filha. Eu sei. E não é por mim que eu temo, mas por ti...
Pegou as compras e saiu, caminhando mais depressa do que a saúde lhe permitia, e deixando-me intrigada com seu estranho comportamento.
Alguns dias depois, eu estava na fila do banco, quase na boca do caixa, quando a vi entrar. É certo que existe uma lei que diz que os idosos tem preferência de atendimento; mas também é certo que nem todas as leis são cumpridas neste país. Portanto, ao ver que ninguém tomaria a iniciativa de chamá-la para o atendimento preferencial, ofereci-me para trocar de lugar com ela.
Ela aceitou, não sem me olhar de uma forma que me assustou um pouco. Foi atendida e saiu do banco. Eu ainda levei um bom tempo para isso. Mas, quando saí, encontrei-a na porta. Estava me esperando.
 Filha  disse ela , estou vendo que és uma boa moça.
Sorri, um pouco encabulada, mais por ter sido chamada de “moça” do que por qualquer outra coisa  quando se passa dos trinta, isso é um tremendo elogio.
 Obrigada, senhora.
 Mas eu preciso te dizer uma coisa: não confies assim nas pessoas. Especialmente nas pessoas estranhas. Nas pessoas diferentes.
 Ora, mas por que não? Em geral, é tudo gente boa.  Aproximei-me dela e cochichei:  Esse pessoal daqui é meio preconceituoso, mesmo, mas isso não passa de bobagem, afinal, todos somos filhos de Deus.
 Nem todos.
Franzi a testa e a olhei com um interesse redobrado.
 Se meus conselhos não te convencem, filha  disse ela , gostaria de poder te contar a minha história...
 E por que não? A senhora não quer ir tomar um chimarrão comigo, lá em casa?
Ela estremeceu e olhou em volta, de repente muito vermelha. Parecia que eu a tinha convidado para cometer um crime, de tão constrangida que se mostrou.
 Está bem  disse, baixinho.

Dona Leucádia havia sido professora. Há muitos anos, tinha morado numa cidade distante. Sempre gostara de crianças e adorava seu trabalho. Mas, embora cuidar dos pequeninos a deixasse muito feliz, tinha uma grande tristeza: casada há mais de sete anos, ainda não tinha filhos.
Naquele tempo, havia chegado em sua cidade uma misteriosa senhora. Morava numa casa isolada, no final de uma rua. Na verdade, num casebre estranho e lúgubre, onde, noite adentro, os passantes juravam ouvir gemidos agônicos e outros sons aterradores.
A Professora Leucádia sabia muito bem o que era o preconceito. Seu pai fugira da Alemanha nazista por sofrer perseguição política  e, quando chegara no Brasil, o primeiro xingamento que lhe haviam dirigido tinha sido justamente “porco nazista”. Além do mais, por ser protestante num país de maioria católica, tinha sido bastante discriminado durante um bom tempo. Na época em que Leucádia se tornara adulta, esse tipo de preconceito já vinha perdendo força, mas ainda apresentava algumas reminiscências. De qualquer forma, ela tomara as dores da mulher – a bruxa, como todos a chamavam. E passara a nutrir por ela a mesma simpatia que, nos dias de hoje, eu nutria por Dona Leucádia.
Certo dia, ao final das aulas, um grupo de garotos viu essa senhora passar diante da escola e começou a importuná-la. Gritaram-lhe imprecações. Um dos garotos pegou uma pedra e jogou na velha. Imediatamente, a Professora Leucádia o agarrou por um braço  naquela época, ainda existia tal prerrogativa para os mestres  e o arrastou para dentro do prédio escolar. Passou um sermão nos outros garotos e mandou que a deixassem em paz, senão iria tomar providências.
Então, aproximou-se da velha e perguntou como ela estava. A velha sorriu, respondeu-lhe que estava bem e agradeceu. Então, convidou-a para ir à sua casa. A professora aceitou.
Quando entrou na casa da velha, Leucádia sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. A casa era escura, mal se via dentro dela. Uma vela queimava num canto. Era inverno, e o sol já se pusera. A casa era fria e úmida. A velha lhe ofereceu uma cadeira e Leucádia se sentou.
 Minha filha  disse a idosa , em muitos anos, nunca pessoa alguma foi tão gentil comigo como foste hoje. Por isso, eu quero te recompensar.
 Não precisa, senhora. Não fiz mais do que minha obrigação.
 Ah, precisa sim, querida. Vamos  e olhou-a de um jeito que, à luz da vela, arrepiou-lhe até a alma.  Tem algo que eu possa fazer por ti?
Leucádia sorriu com tristeza.
 Não, minha senhora. Levo uma vida simples, mas tenho tudo o que quero.
 Tudo mesmo, minha cara?
Leucádia suspirou.
 A única coisa que eu gostaria de ter é algo que a senhora não poderia me dar...
 E o que seria, minha querida?
 Bem, eu gostaria de ter um filho. Mas isso não é possível...
 Quem disse que não é possível?
A velha aproximou o rosto do dela. Leucádia sentiu-lhe o hálito  um hálito estranho, mofado, como que de coisa muito antiga e há muito tempo guardada longe da luz do sol.
 Realmente  disse , não é algo fácil. Requer um sacrifício. Mas há de ser um pequeno sacrifício, minha querida.  Sorriu com uma certa malícia.  Nada que não valha o que você receberia em troca.
 Como assim?
A velha cravou-lhe os olhos, e Leucádia os sentiu tão frios que estremeceu.
 Vida por vida  disse ela.  Traga-me aqui um ser vivo. Qualquer ser vivo. E posso lhe garantir que você terá o seu bebê.
Leucádia levantou-se de chofre.
 O quê? A senhora é mesmo uma... bruxa, e está me propondo sacrificar um animal num ritual de bruxaria?...
A velha deu uma risadinha.
 Mas o que você está dizendo, minha cara? Bruxa, eu? Não é o que os católicos dizem acerca dos protestantes, que são bruxos, hereges, adoradores do demônio?
 Ora, alguns até dizem isso, mas não é verdade!
 E o que é a verdade? sorriu, aproximou-se da professora e passou a mão pelos cabelos louros dela.  Não deixe que mais um preconceito a afaste da felicidade, minha querida. Não precisa me responder hoje. Vá para sua casa e pense no que lhe propus. Se abrir sua mente e seu coração a uma possibilidade diferente das que conhece, terá o que tanto deseja, e é algo que, até agora pelo menos, parece que seu Deus não lhe deu...
Leucádia voltou para casa entre enojada e enraivecida. Durante vários dias, quando passava pela velha na rua, não a cumprimentava. Mas podia vê-la sorrir com malícia, de canto de olho. E, ao passo em que os dias transcorriam, sentia a tentação crescer dentro de sua alma. Era verdade, seu Deus não lhe dera filhos. E depois... Que mal teria? Não estaria vendendo a alma, apenas entregando um bicho. Um bicho. O que era um bicho diante de um ser humano que haveria de nascer?...
Leucádia tinha um gato em casa. Quando adotara o animalzinho, apegara-se bastante a ele. Era um gato vira-latas, completamente preto, que ela encontrara no ano anterior, quase morto de frio, diante de sua porta. Não era exatamente um bom gato  acostumado à luta pela sobrevivência, arranhava, mordia, destruía sua mobília e fazia as necessidades em seus vasos de plantas. Seu marido detestava o animal. Implicava com ele o tempo todo. Mas Leucádia transferira para ele parte de seu instinto maternal, e o adorava.
Certa tarde, porém, quando chegou em casa, encontrou-a na mais completa desordem. O gato havia se pendurado numa cortina e derrubado o trilho desta por cima de uma estatueta, que se partira. Certamente ficara nervoso com os barulhos que sua artimanha causara, e resolvera se acalmar destruindo o forro do sofá com as unhas. Não contente com isso, entornara seu pires e deixara um rastro de marcas de patas sujas de leite e terra por todo o assoalho, desde a cozinha até a cama do casal, em cima da qual se enroscara e dormia.
Leucádia pensou na reação do marido e sentiu o sangue ferver.
Imediatamente, agarrou o gato e o enfiou dentro de uma gaiola que utilizava para quando precisava levá-lo ao veterinário, deixou um bilhete com uma desculpa qualquer para o marido e se dirigiu à casa da velha, com passos largos e decididos.

Quando se aproximou da casa da bruxa, sentiu o arrependimento embotar-lhe os passos. Olhou em volta. Não havia ninguém na rua. Engoliu em seco. Sentia-se mal com aquilo. O animal a olhava com os olhos muito redondos e arregalados, e tremia, como se soubesse que destino que o esperava... E sua consciência pesava terrivelmente. Deus, o que estava fazendo? Deu meia-volta.
Nesse instante, porém, a porta se abriu e ela ouviu a voz rouca da velha:
 Entra, Leucádia. Eu já estava esperando por ti. Sabia que virias hoje.
A professora teve ímpetos de correr, mas algo a deteve. Voltou-se e entrou na casa, que lhe parecia ainda mais assustadora. A velha fechou a porta e a trancou. Então, aproximou-se da gaiola.
 Vejamos, o que temos aqui  disse, abrindo a portinha e estendendo a mão magra e ossuda para dentro da pequena jaula.
Imediatamente, o animal a arranhou.
 Ora, mas que bicho estúpido! resmungou ela.  Vamos, Leucádia, tire-o daí e venha atrás de mim. Já está tudo preparado.
A professora obedeceu. Algo no ambiente esfumaçado a atordoava, parecia-lhe estar num sonho. O gato deixou-se apanhar e carregar nos braços de sua dona até a sala contígua, onde havia uma mesa coberta por um pano negro. Em cima dela, um castiçal com três velas, um punhal e uma bacia.
 Vamos, dê-me o ser vivo...
Leucádia estendeu-lhe o gato. Porém, ao sentir o toque das mãos da velha, o animal arrepiou-se, grunhiu e tentou escapulir. A velha tentou agarrá-lo. Então, com suas unhas afiadas, o bicho rasgou-lhe o rosto, vazando-lhe uma das vistas.
A velha soltou um berro e o animalzinho correu para um canto escuro.
 Meu Deus! gemeu Leucádia, agarrando o pano preto e pressionando-o contra o ferimento.
 Que maldita fera é esta que tu me trouxeste, desgraçada? gritou a velha.
 Desculpe... Desculpe, senhora, eu não sabia que ele ia fazer isso... Vou chamar uma ambulância...
A velha largou o pano e a encarou. Leucádia estremeceu. O olho que lhe restava parecia soltar chamas.
 Não  disse ela.  Eu estou bem. Posso cuidar disso depois. Agora, vamos prosseguir. Encontre-o.
Atônita, Leucádia procurou o gato, que se escondera embaixo de um armário. A velha se aproximou e abaixou-se, dizendo algumas palavras estranhas numa língua que a professora não compreendia. Estranhamente, o animal deixou-se agarrar e levar novamente para cima da mesa. A velha continuou com sua invocação. Seus gestos eram pausados e lentos, e pareciam hipnotizar o gato. Porém, muito de repente, tomou o punhal, cravou-o no pescoço do bicho e puxou-o de volta. O sangue, muito rubro, jorrou com força, e a velha o recolheu na bacia. Imediatamente, o gato voltou do transe e tentou se debater, mas a velha enfiou-o no recipiente. Então, pegou uma das velas e, recitando sabe-se lá que palavras, levou a chama ao sangue, que pegou fogo como se fosse álcool. O gato ainda estava vivo e contorcia-se terrivelmente. As chamas o consumiam, mas não pareciam causar qualquer dano à mão da velha que o segurava dentro da bacia. O cheiro de pêlo queimado empestou o lugar. Leucádia olhava horrorizada. O couro do animal se enrugava, a carne soltava-se de seus ossos, deixando entrever borbulhas aterrorizantes que emergiam desde suas entranhas. No entanto, ele permanecia vivo  vivo e padecendo aquele sofrimento horrível...
Até que, finalmente, ficou imóvel.
No mesmo instante, o fogo se extinguiu e a velha olhou, sorrindo, para Leucádia.
 Agora  disse , vá para casa e pertença a seu marido. Dentro de alguns meses, você terá a sua recompensa.

Leucádia se revolvia em dores de parto. Mas estava feliz. Finalmente teria o filho por que tanto ansiara. Finalmente, seu marido sentiria orgulho dela. Até que, de repente, pareceu-lhe que seu corpo se rasgara, e, então, ouviu um choro de criança.
Mas não era um choro comum.
O médico e a enfermeira se entreolharam. O doutor fez sinal à auxiliar para que embrulhasse a criança e a levasse dali.
 O que foi? perguntou Leucádia, ofegante.
 Nada... Nada  mentiu o médico.  É um menino, professora. Agora, descanse.
 Não quero descansar. Eu quero ver o meu bebê.
 Depois, professora.
 Não, agora! Cadê o meu bebê? Não o levem! Onde ele está?...
A enfermeira aproximou-se, com a criança, já enfaixada. Tinha o semblante pesado e hesitava um pouco. Olhou para o médico.
 Bem  disse o doutor , mais cedo ou mais tarde, ela vai ter que vê-lo...
A enfermeira entregou-lhe o embrulho. Leucádia destapou o rosto da criança e soltou um gemido de horror.
O menino tinha o lábio superior cortado por uma fenda que ia até o nariz, aliás, tão pequeno que quase não existia. Seu rosto apresentava grande quantidade de pêlos negros. E o ruído que ele emitia não parecia um choro de criança  na verdade, parecia mais um grunhido, ou mesmo um miado...

 Desgraçada! berrou Leucádia, encarando a bruxa, ao mesmo tempo em que ainda sentia as dores dilacerarem-na.
 Calma  respondeu a velha.  Não podes ficar assim. Tiveste um parto muito difícil.
 O que fizeste com meu bebê, sua infeliz?
 Eu? Não fiz nada. Tens o bebê, como eu te prometi, não tens? Eu cumpri com a minha parte. Não tenho culpa se os deuses não gostaram da tua oferenda...
 Deuses? Teus deuses são demônios!
 Ora, mas que te importa o que eles sejam, minha cara? O que importa é que tens o teu filho. E, se te acalmares, posso até solucionar o que aconteceu.
 Como, solucionar?
 Ora, minha querida. Essa criança vai crescer.  A velha fez uma pausa e a encarou. Tinha novamente os dois olhos, embora Leucádia não soubesse se um deles não seria de vidro; de qualquer forma, ambos pareciam mirá-la perfeitamente.  Muitas crianças nascem com mal-formações congênitas que acabam desaparecendo ao longo da infância...
 Mal-formações?...
 Claro, minha querida. É o que parece ser o caso do teu bebê. Ele não é um animal, é um ser humano; pode se parecer com um animal, mas é humano. Aliás, é justamente isso que lhe falta: humanidade. Se tivéssemos mais humanidade para lhe dar, tenho certeza de que poderíamos resolver os seus problemas, e os médicos pensariam que eram apenas defeitos genéticos que o tempo minimizou ou fez desaparecer.
 Como assim mais humanidade?
A velha aproximou-se dela, com seu hálito de mofo invadindo-lhe as narinas.
 Vida humana por vida humana  sussurrou-lhe ao ouvido.  Traga-me a vida de um homem e eu devolverei a seu filho a forma de um homem.
 Estás louca? Monstro! O que mais quer de mim, bruxa desgraçada? Ah, mas não vais mais enredar ninguém com tuas artimanhas, porque eu vou te matar!
 Eu não faria isso, se fosse tu. Lembra-te de que o que eu fiz, só eu posso desfazer. Mas, para isso  passou novamente a mão pelos cabelos da professora  eu preciso do sangue de um homem. Traga-me o sangue de um homem e seu filho será um homem.
 Vá para o inferno, sua bruxa maldita! gritou a professora, deixando a casa e batendo a porta atrás de si.

O menino cresceu recluso. Leucádia não o deixava sair de casa, com medo dos olhares preconceituosos da sociedade. Mas dentro do próprio lar ele também não tinha paz. Seu pai o desprezava. O marido de Leucádia revoltou-se imensamente com o destino que lhe dera um filho deformado. Começou a beber. Tornou-se violento. Espancava o menino e, de vez em quando, também batia na mulher.
O garoto, por sua vez, tinha um temperamento indócil e estranho. Não que lhe faltasse a inteligência humana; mas esta parecia ter-se misturado aos mais terríveis instintos de um predador. Quando o pai lhe batia, revidava a mordidas, até o ponto em que, acuado, corria a esconder-se nalgum canto escuro. Às vezes, também mordia e arranhava a mãe. Mas o pior era seu olhar. Tinha olhos castanho-claros, nos quais as pupilas pareciam permanentemente dilatadas, e franzia a testa de uma maneira terrível, sinistra.
Certa tarde, quando a mãe chegou do trabalho, saltou sobre ela, de repente, derrubou-a e começou a mordê-la.
Já estava se tornando um adolescente. Leucádia não sabia mais o que fazer. Sofria uma culpa esmagadora e, apesar de tudo, amava o filho  amor esse que multiplicava-lhe os sofrimentos, quando percebia que o jovem era suficientemente sensato para perceber que era anormal e que tinha uma vida infeliz e solitária pela frente...
Até que, determinada noite, o marido de Leucádia chegou, bêbado, e deu um tapa no garoto. Este lançou-se em seu pescoço, para mordê-lo. O homem o atirou com força contra uma parede. O garoto soltou um guincho inumano e correu para se esconder nalgum lugar.
 Por que fizeste isso? perguntou Leucádia.  Ele estava quieto, não te fez nada! Tu é que o provocaste!
 Cala a boca, mulher! berrou ele.  A simples presença desse monstro já me ofende! E fica sabendo que só ainda não o matei porque ele bem que sabe se defender. Mas, qualquer dia desses, eu o pego de surpresa, e aí vais ver o que lhe acontece!
Leucádia o olhou com horror. O homem ligou a televisão, agarrou uma garrafa de canha num armário bebeu um gole, no gargalo, deixando-se cair num sofá. Leucádia o olhou com raiva.
De repente, uma idéia insinuou-se em sua mente.
Sem que ele percebesse, saiu da sala e deslizou até a cozinha, saindo da casa pela porta dos fundos.
Mas, enfurecida como estava, não se lembrou de trancar a porta e não percebeu quando uma sombra sorrateira a seguiu pelas ruas da cidade.
Caminhou até a casa da bruxa. Desta vez, não sentiu qualquer ponta de remorso. Muitos anos de sofrimento haviam-lhe curtido o coração. Não tinha pena alguma. Quando a velha atendeu, disse-lhe que naquela noite lhe traria sangue humano. Que queria que seu filho fosse curado. Só não sabia como trazer a vítima...
 Ora, mas não precisas trazê-lo aqui  respondeu a velha.  Basta que o mates e que me tragas seu sangue.
 Melhor. Assim é mais fácil.
 Agora vai, querida. Vou preparar tudo.
E, enquanto Leucádia voltava para casa, a bruxa começava a recitar suas ladainhas pagãs.

Quando Leucádia chegou de volta, a garrafa de cachaça estava quase vazia ao lado do sofá, e seu marido dormia, ressonando pesadamente. Não iria acordar com facilidade. Leucádia foi à cozinha e pegou uma faca afiada e uma bacia de lavar louça. Aproximou-se dele, pé ante pé. Encostou-lhe a faca no pescoço.
Nesse instante, ele abriu os olhos.
Leucádia não hesitou.
O homem ainda conseguiu se levantar e emitir algum som, levando as mãos ao corte profundo que lhe abrira as artérias, mas logo estava suficientemente fraco para que Leucádia o dominasse e o derrubasse no chão, firmando-o com um joelho sobre sua barriga. Ela recolheu o máximo de sangue que pôde na bacia. Percebeu que os movimentos do marido foram se tornando escassos, até que seus olhos se vidraram e seu rosto se paralisou numa expressão de desespero. Levantou-se e o olhou com desprezo. Então, cobriu a bacia com um pano e se foi para a casa da bruxa.

Ao chegar lá, porém, percebeu que a porta estava aberta.

Entrou, sentindo uma angústia sufocá-la, e logo viu, à pouca luz de uma vela, o que lhe pareceu ser um animal devorando sua presa. E imediatamente uma intuição clarividente a fez perceber o que acontecera.

Seu filho. Seu filho monstro. Ele a seguira, em meio à noite. Ansioso como um predador. Talvez, de alguma maneira, trouxesse em si o ódio que o animal sacrificado sentira pela feiticeira...
E agora, saltara sobre a velha, e seus dentes haviam-lhe dilacerado a garganta, ao mesmo tempo em que suas unhas haviam-lhe rasgado o rosto a ponto de torná-la irreconhecível...

Olhei para a assassina confessa que tinha diante de mim e procurei perceber se havia algum sinal de remorso em seu olhar. Sim, havia.
Não me atrevi a perguntar o que acontecera depois. Provavelmente, tinham fugido da polícia, que não havia conseguido solucionar o caso. E também, provavelmente, os guinchos que se ouvia ao passar por diante de sua casa eram os guinchos de seu filho, enclausurado – talvez enjaulado e acorrentado por toda a sua vida, pagando pelos pecados dele e pelos de sua mãe...
Dona Leucádia percebeu meu desconforto e me lançou um olhar triste.
 Bem, minha filha, vou-me embora. Não precisas me cumprimentar quando passares por mim na rua. Eu vou entender.
Suspirei profundamente.
 Não, é que... Bem... Quanto tempo faz isso, mesmo?
 Mais de trinta anos.
 Então... Se é que essa história é verdade, e se é que a senhora cometeu mesmo esse... crime, isso... Isso já prescreveu  balbuciei.  Não pode mais ser punido, pelas leis do país. E... Bem, se as leis digam que deve ficar assim, não sou eu quem vou dizer o contrário...
Ela riu, com certa condescendência.
 Claro, minha filha, que não vais contar essa história para ninguém.
 Com certeza, Dona Leucádia. Não quero ir parar num hospício.
Ela se levantou e ia saindo quando uma dúvida me assaltou e a chamei:
 Espere, Dona Leucádia. Há uma coisa me intrigando...
 O quê?
 Se essa... essa, digamos assim, feiticeira foi capaz de prever que a senhora iria visitá-la naquele dia levando o gato, por que ela não foi capaz de prever que seu filho iria atacá-la?
A velha suspirou.
 Porque, minha filha  e me encarou com tristeza, enquanto uma lágrima escorria do canto de um dos seus olhos  a recompensa das trevas é assim mesmo: só pode trazer a dor, o sofrimento e o mal, e nunca o bem...

terça-feira, novembro 13, 2007

O Observador

Por Cayus

Tudo começou como uma brincadeira.
Ele chegou cedo em casa, acendeu as luzes e deitou-se na cama. Estava cansado. Trabalhara o dia inteiro, mas finalmente havia chegado ao seu doce refúgio. A casa era de dois andares, num subúrbio do Rio Grande Do Sul, pequena e aconchegante. Suas paredes brancas contrastavam com a solidão de seu interior vazio e fúnebre. Só possuía 3 peças o casebre. Um banheiro e cozinha embaixo com o quarto na parte superior. Jorge havia se mudado há pouco tempo, não conhecia muita gente, não possuía muitos móveis, mas tinha sua morada como um esconderijo, uma fortaleza. Era o que mais gostava no dia. Poder deitar naquela cama, se espreguiçar pra todos os lados, ninguém pra perturbar. Sequer um bichinho de estimação. Mas como disse, tudo começou como uma brincadeira.
Lá estava Jorge relaxando, tranqüilo na nova casa, quando ouviu um ruído vindo da basculante. Era um ruído próximo, como se fosse ao lado da cama, mas ele estava no andar de cima. O que poderia haver do lado de fora da casa? Nem mesmo havia reparado nisso quando a comprou. O barulho persistiu.
Jorge levantou-se meio sonolento ainda e caminhou naquela direção, tentando descobrir o que fazia aquele som. Aproximando-se da janelinha, pôs os olhos furtivamente sobre o vão do vidro e observou uma deliciosa cena: uma loira de cabelos compridos, alta, seios fartos, cintura perfeita, tomando banho na residência ao lado da sua. Uau!
Ele ficou estagnado por um momento, quase teve um espasmo de alegria, mas conteve-se refletindo na situação. Será que deveria continuar ali onde estava? Observando como um tarado qualquer que espreita uma cena perniciosa? “Claro que sim!” Pensou ele instintivamente.
Na verdade tivera a maior sorte da vida. O lugar certo na hora certa. Aquela janela dava para o banheiro de outra casa. E olhando ao seu redor, Jorge notou que haviam outras basculantes como aquela!Quem sabe...Sim! as janelas de seu quarto se direcionavam para outros cômodos de outras casas. Simplesmente perfeito!
E assim começou a brincadeira deliciosa de Jorge. Todos os dias chegava em casa como um louco e corria para as janelas. Ficava a noite toda lá, espionando, observando. Logo, começou a dedicar os finais de semana inteiros naquela atividade. Depois parou de se alimentar frequentemente para economizar tempo em sua missão. Comprou câmeras, binóculos, anotava e redigia tudo o que via, tudo o que ouvia. Estava paranóico!
Dois meses depois estava sem emprego, magro e completamente só. Nada deveria atrapalhar sua obsessão. Dias e noites a fio com os olhos ali, controlando tudo o que se passava nas moradias alheias. Um guarda silencioso. Eterno vigia sombrio preso nos pensamentos obscuros da mente insana. Só havia um grava problema que o importunava todas as vezes que se encontrava de tocaia: a intensa vontade dos vizinhos de VIVER!
Apesar de Jorge ter se isolado totalmente do mundo externo, vivendo de raras refeições, dedicando-se de corpo e alma á sua tarefa,seus nobres vizinhos não compartilhavam do mesmo compromisso para com ele. Como todas as famílias normais saíam para passear, trabalhavam, enfim, possuíam um jeito normal de ser. Foi aí que Jorge resolveu ajuda-los a ter mais responsabilidade e respeito para com os outros.
---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Depois de uma semana presos como ratos numa gaiola, já deveriam estar sentindo o gostinho de como é ficar tanto tempo só, sem poder sair para nada, completamente esquecidos pelo mundo. Agora veriam como era bom! “ Grande idéia, soldar as portas, trancafia-los todos de uma só vez. Grande idéia! “ Satisfazia-se Jorge por dentro, remoendo consigo mesmo a atitude que tomara para acabar com aquele despeito. Imaginem só, que insolência deles pensar que poderiam ficar livres enquanto ele se sentia tão...preso! Agora colhia os louros da vitória. Podia espreitar á vontade, olhar sem cansar. Que ótimo! Mas, tudo o que é bom, uma hora acaba...
“Ai, que droga, calem a boca! Chega de choro, seus idiotas! “ Mais uma vez Jorge revirava-se na cama tentando dormir. Mas como se não ficavam quietos! Toda a graça, toda a naturalidade da coisa se perdera por completo. Não era mais como antes. QUE GRANDE DROGA! Não durou muito até que se arrependesse tremendamente de ter feito o que fez. O que fazer? Chamou a polícia (pobre Jorge).
Passaram-se algumas horas e houve um grande tumulto. Muito barulho. “ quem sabe daqui há um tempo o silêncio não volte a reinar” pensava ele tomando um cafezinho, enquanto observava pela janela as pessoas arrombando a porta na casa ao lado. E na outra. E na outra de novo." Quem sabe não é?”
De repente o barulho começou a ficar mais forte. E mais intenso. Como se fosse ali mesmo, na própria casa de Jorge. “ Que estranho!" Não tão estranho quanto aquela fumaça que invadiu o local. Nem aqueles homens correndo ao seu encontro. Mais esquisito ainda aquela horrível dor na nuca. O que teria acontecido?
Agora Jorge estava num lugar minúsculo, deitado em uma espécie de cama com correntes que prendiam seus pés e mãos. de vez em quando surgia um prato de comida por debaixo da imensa porta de ferro que não o deixava sair. Nada de janelas. Nada de vizinhos. “ Que lugar é este?” Pensava Jorge, apavorado. Á noite, tinha pesadelos horríveis com demônios todos de branco que vinham lhe atormentar com espetos, alfinetando seu corpo todo sem parar. obrigavam-no a engolir coisas com um gosto estranho que lhe davam arrepios e traziam á memória todo o tipo de sofrimento por que já tinha passado. Jorge sentia-se todo o tempo observado, algemado, como se olhos vivos o vigiassem o tempo todo. Diferente de antes, tudo o que ele queria era SAIR, SAIR,SAIR!
Do outro lado da sala o enfermeiro da ala psiquiátrica conversava com o médico:
‘O que o senhor acha desse caso doutor?'
“ Meu jovem, é bom que você observe bem. Como pode ver ele está paranóico. Necessita de terapia intensiva. Tome conta especialmente deste paciente. Jamais o deixe sozinho, de maneira nenhuma.”
‘ Será que tem solução doutor?’
‘ Não meu amigo. Creio que não. Pela minha experiência, digo que passará o resto de seus dias aqui. Tudo o que lhe resta agora é ser observado constantemente para pesquisas médicas. Mas não se entristeça, olhe o seu histórico mental! Com certeza ele adorará ser vigiado para sempre.’

Não deixe de enviar sua obra!!!

Se você tem um texto sombrio e que ve-lo publicado aqui não deixe de nos enviar!!!

Abraços Soturnos

Linx

Jogo Eterno

Para não deixar o sonho morrer rs. Mais um conto de minha autoria

Por Linx

“Somos apenas peças, peões, cavalos, bispos e rainhas
De um jogo eterno chamado vida...”


K. caminhava pelas ruas já escuras do centro da cidade seguindo o mais rápido que podia para sua casa, pois à aquela hora a cidade já não era tão amigável e nos últimos anos então, nem mesmo a luz do dia se podia confiar andar distraída pelas ruas.
— Droga! Disse ela ao sentir leves filetes de água que começam a cair molhando de leve seus ombros e pernas descobertas por uma esperança de dia de calor e de quem sabe mostrar ao seu colega ao lado que ela existia e quem sabe desviar um pouco os olhos da loira que se sentava a sua frente – o que também não passou de pura esperança
K. agora corria contra a malha fina de água que cobria o céu, já acompanhada de um vento frio.
— Droga. Droga... Ah!
Entre uma calçada e outra havia uma grade cobrindo uma boca de lobo, onde ela enroscou o salto, fazendo seu corpo cair seco no asfalto, espalhando seus livros e caderno no chão
Dor, e logo depois lagrimas, mas não apenas pelo tombo, mas por tudo. Era como se ela tivesse trancado tudo e o tombo tivesse deixando tudo sair do cofre e cair na suas costas; faculdade, seu trabalho, seu chefe que lhe cantava todos os dias e que a ameaçou pela terceira vez de demissão se não lhe “abrisse as pernas”, o imbecil do garoto que ela tanto amava e que agora provavelmente transava a luz de uma lareira com uma loira falsa filha de um vereador corrupto. Seu choro não pode ser contido por maior que fosse seu esforço, suas lagrimas se misturavam com a água que corria das calçadas e da chuva que caia lavando as ruas. Por um tempo ficou ali tentando parar de chorar e criar forças para se levantar. Com um pouco de força e um pouco mais de tempo suas lagrimas enfim secaram e seus braços enfim ergueram seu corpo dolorido
— Que droga! Inferno! Minhas pernas...
Seus olhos ameaçaram lacrimejar, contendo ela com um suspiro, como quem tenta engolir algo. Sabia que se começasse a chorar não pararia mais. Abaixou-se novamente e recolheu suas coisas já ensopadas do chão, colou-as contra o peito e continuou a caminhada, agora lentamente, pois seus joelhos doíam muito e seus pés ardiam como fogo. Novamente engoliu o choro que vinha, olhou para cima de olhos fechados, contou até dez e novamente voltou seus olhos para frente, e devagar, caminhando até o ponto de ônibus.
Algum tempo de caminhada forçada e logo a frente ela avistou o ponto estranhamente vazio, o que a fez atentar para o estranho vazio da cidade daquele dia. por mais que fosse tarde, sempre havia um bêbado, uma prostituta, um alguém caminhado por entre as ruas escuras e hoje ela não se lembrava de ter visto nem mesmo um gato vira-lata miando a luz do luar. Mas agora aquilo não tinha muita importância, ela estava molhada, com fome e toda ralada, só queria pensar em um banho quente, um prato de sopa e sua cama
— Ei você!
A voz masculina vinda de trás dela a fez gelar. Seu corpo paralisou, apenas conseguindo tremer e encher seus olhos de água. Era seria roubada e quem sabe mais o que...
Uma mão lhe tocou e ela num instinto que nem mesmo ela saiba existir dentro de si se virou e ergueu a mão
— Calma, calma, não vou te machucar. Disse o senhor num tom de nervosismo
Seu punho parou no ar e logo se abaixou ao ver o rosto preocupado do senhor, que a olhava fundo nos olhos
— O que foi? Disse ela ainda receosa, gaguejando e tremendo ainda um pouco
— Por favor me ouça. Vai embora
— Bem é isso que quero fazer
— Não, você não entendeu, vai embora! Disse ele num tom mais alto e nervoso
— Não vê que é isso que quero fazer. Só estou esperando meu ônibus
— Não, por favor me ouça. Corra, fuja, vá embora
— Por que me diz isso senhor. Disse ela já irritada
— Apenas vá, você não pode ir... Vá!
O grito do senhor ecoou pelas ruas, deixando K. apavorada. De longe ela avistou ônibus encostando no ponto. Num movimento rápido ela se virou e correu desesperada até o ônibus
— Não! O homem gritou e correu até o ônibus
— Motorista fecha a porta, aquele doido está me perseguindo
— Sim senhorita! Disse o motorista atendendo prontamente a jovem
O homem bateu a porta e ainda a socou algumas vezes gritando para que a moça abandonasse o ônibus.
— Me deixe! Gritou ela desesperada dentro do ônibus
— Senhor por favor vá antes que eu chame a policia. Disse o motorista num tom grave
— Não vá! Não vá!
— Vai embora! Gritou ela com todas suas forças
O motorista se levantou, mas ao olhar a porta viu que o homem havia sumido
— Tudo bem senhorita ele já foi
— Obrigada moço
— Tudo bem não foi nada. Esses vagabundos covardes. Bem vamos?
— Sim, vamos. Disse ela se sentando em um dos bancos da frente
O motorista ligou o motor, soltando levemente o carro, quando dois homens encostaram na porta, cada um com uma arma
— Abre a porra da porta! Gritou um deles batendo a arma no vidro
— Tudo bem calma, estou abrindo. Disse o motorista abrindo a porta
Os dois entraram no ônibus, se dirigindo direto ao cobrador.
— Passa o dinheiro rapidinho camarada. Disse um deles colocando o cano da arma na cabeça do cobrador
— Calma amigo. Pode pegar, mas me deixa em paz, tenho uma filha e mulher e não quero encrenca
O bandido revirou a gaveta, tirando todo o dinheiro que encontrou e pondo nos bolsos de sua jaqueta de couro gasta
— A carteira também
— Toma. Disse ele tirando a carteira, o relógio e um celular. Leva tudo
— Você também, a carteira, o relógio... disse o outro, pondo os olhos em K. sentada na canto tremendo, quase chorando. Oi gatinha, disse ele indo para o lado dela.
O outro largou o cobrador e foi também até onde K. estava
— Então gostosa como vai. Disse ele se sentando ao lado dela, colocando a mão em sua coxa
— Pode levar tudo. Disse ela estendendo um pouco de dinheiro e um celular que ela guardava na cintura
— Não que isso, acha que eu roubaria uma gatinha dessas? Disse ele rindo ao seu amigo. Sabe gatinha. Disse ele beijando seu pescoço. Nossa como você é cheirosa
— Por favor me deixa em paz. Disse ela chorando
— Calma, só quero fazer um carinho
— Me deixa! Gritou ela se esquivando, arranhando ele com a presilha de seu cabelo
— A vadia então é brava. Disse ele passando a mão no arranhado
— Acho que ele precisa ser amaciada. Disse o outro
— É... vem comigo. Disse ele se levantando e puxando ela do banco
— Me deixa! Socorro!
— E vocês dois quietinhos, senão meto bala nos dois
Os dois a arrastaram do ônibus, enquanto o motorista e o cobrador ficaram impotentes olhando a ação de longe. Mais a frente os dois a jogaram no chão e começaram a lhe rasgar a roupa
— Socorro! Me deixa!
— Pode gritar gostosa. Adoro uma vadia que grita
Os dois tiraram as roupas e um deles se deitou em cima dela enquanto o outro forçava um beijo
O ônibus saiu em arrancada, revelando atrás dele o homem que antes lhe gritava. Ele via tudo de longe, deixando correr lagrimas pelo seu rosto
— Pare com isso, sei que você pode parar esse sofrimento! Gritou ele para cima
— E por que eu faria isso? Disse um homem ao seu lado
— Porque faz isso? Disse o senhor ao homem que assistia tudo com um meio sorriso
— Não faço nada. Não sou eu, são eles
— Seus filhos! Disse uma vez isso! Chamou-os de filhos!
— Filhos? Não se faça de ingênuo, está morto a tanto tempo e ainda acredita em histórias de faz-de-conta.
— Seu maldito! Gritou o homem
— Ora meu caro não seja um mau perdedor. Olha pra ficar mais divertido deixo você da próxima vez falar a palavra ônibus. Sabia que esse é um dos jogos que eu mais gosto? É um dos mais emocionantes
— Demônio desgraçado! Gritou o senhor ao nada, vendo que ao seu lado não mais havia ninguém
O senhor se pôs a chorar novamente, vendo na sua frente a garota morta e os homens fugindo. Ele então foi a frente a garota deitada e olhou seu lindo rosto, agora deformado por hematomas
— Me perdoe...
Ao longe o homem viu um grupo de almas perdidas, almas que ele deixou morrer, almas do jogo perverso da vida. Ele era apenas uma alma, que como todos nos, partes do jogo perverso dele.

sábado, outubro 27, 2007

O MELHOR VÍDEO DE OVNIS DE TODOS OS TEMPOS!

Será real, será uma farsa? Estará o homem prestes a encontrar seus visinhos do espaço sideral? Assista e decida vc!



HOMENAGEM LUPINA

Olá, amigos e amantes das trevas! O blog da Irmandade Das Sombras garimpou no Youtube mais este vídeo de lobisomens para vcs. É uma colágem de várias sequências dos filmes mais importantes do gênero. De quebra tem uma super trilha sonora! Divirtam-se!




sexta-feira, outubro 12, 2007

É Complicado

Por Méav

Sim...
É complicado perdoar alguém...
Se tem uma atitude nobre na qual eu não tenho...
É perdoar...
Sim...
Perdoar...
É muito mais fácil um sentimento de ódio, raiva, rancor...
Transparecer em mim...
Do que amor, felicidade...
Nasci para ser assim...
Nasci para sentir ódio das pessoas...
Sim...
Ódio...
É complicado...
Eu sei...
Tentei mudar...
Sim...
Tentei...
Mas infelizmente sou assim...
Gostem ou não...
Sou assim...
É complicado...
Explicar...
Sim...
É complicado...

Cartas de Amor

Por C.M.Pocot.

Nem sempre o que se esconde atrás dos fatos é a verdade. nem sempre a verdade deve ser dita. porque de todo quando esta é revelada, nem mesmo quem a confessa acredita.
“ Amada de meu coração, desejada de minha alma. Aqui estou diante da tragédia de minha vida. Posto que a meus pés se encontram os corpos de nossos bens mais preciosos na Terra que Deus nos deu. Nossos filhos gêmeos tão queridos por nós, agora já não respiram. Logo me juntarei a esse antro de agonia e solidão não restando apenas os corpos das vítimas, mas também do pai algoz autor da justiça divina.Vos peço que não me julgueis, doce Kerolline. Mas que também não me perdoeis. Posto que minha própria vida darei como salário pelo mal que minha prole causou a nossa aldeia. Também jaz nesta sina nosso filho adotivo Tomás, vítima da inveja e da maldade que se enraizaram nos corações dos gêmeos um dia. Logo, com um punhal e uma pena em mãos hei de consumar o destino que o criador nos outorgou. Ouvi-me esposa de meu coração. Ouvi-me nestas palavras, já que não as repetirei neste solo outra vez.
Vinha eu já de muitas noites conturbado. De todo conhecendo a consciência de nossos filhos, sabendo as atrocidades e ultrajes por eles de contínuo praticados. Bem conheces nossa sina desde tempos atrás, quando adotamos Tomás e logo mais viemos a receber a bênção de 2 pequeninos idênticos se achegarem a nosso lar, alegrando nossa família. Também tens idéia que desde muito cedo, já nas primeiras frases conscientes, os dois tomaram por vereda os maus desígnios do maligno. Atormentavam os bichos, as pessoas, maltratavam a todos que lhes estendiam a mão. Eram indiferentes a qualquer castigo ou conselho. Movidos de influência obscura, por mais que tentássemos detê-los, persistiam nos mesmos erros, bem diferentes de Tomás que tantos sorrisos nos colocou nos lábios.
Desde cedo víamos o notório contraste entre a criança por nós tida como filho e os gêmeos naturais de seu virtuoso ventre, querida. Tomás sempre preocupava-se em fazer o bem. Quando sozinhos os três, sempre sobrevinham as peripécias e maus costumes á mente de nossos filhos apenas. O pobre Tomás de nada fazia para que tivéssemos raiva ou arrependimento de nossa escolha. Pena não serem assim estes dois que de igual modo tanto amamos e idolatramos.
Já nesta saga tristonha há muitos anos vivemos minha cara, tanto que presenteamos aos gêmeos uma casa longe de nossa aldeia, para que os vizinhos de mais nada viessem a se importunar. Tomás com ternura ofereceu-se a residir com eles enquanto mantinha seus estudos, para lhes ajudar no bom caminho. Como sempre, se impuseram vorazmente corroídos de inveja ou qualquer outro sentimento que lhes impelia a terem a propriedade só para eles, repelindo para longe o pobre rapaz. Mesmo assim Tomás nada falou. De nada reclamou. E com carinho estabeleceu-se relutante, mas a nosso pedido. Temendo apenas que seus irmãos se revoltassem ante sua presença ali. Se soubéssemos o quanto estava certo!
Depois de algum tempo, perturbado pensando em como estariam nossos filhos tão longe, resolvi visita-los de surpresa. Seria uma última tentativa para estabelecer a paz em suas mentes tempestuosas. Há algum tempo não ouvia reclamações e me surpreendi com a notícia de que estavam trabalhando. Logo, esperava encontrar naquele casebre um ar de calmaria. Imaginando que nossos gêmeos finalmente houvessem crescido para a vida e abandonado seus erros passados. Mais um horrível erro de minha parte, meu amor! Qual é minha perplexidade quando ao chegar á porta, encontrado-a aberta meio de soslaio, adentrar e observar...não gosto nem de lembrar, doce Kerol!
Nosso querido Tomás debruçado sobra a cama, alvejado certeiramente por um punhal no peito, enquanto nossos outros filhos faziam as malas com certeza se preparando para uma fuga na noite! Não pude resistir, minha amada. Antes que qualquer um dos dois crápulas pudesse pronunciar qualquer palavra, mergulhei de ímpeto contra nossa linhagem!Tomei da arma branca encravada sobre aquele corpo inerte, sem vida, e terminei por manchar minha própria dignidade com o mais negro dos pecados. Sim, meu amor. Tirei a vida de nossos outros filhos!
Era a justiça que deveria ser feita. Chegaram ao extremo da maldade. Era irremediável, meu amor!Nem ao menos foram capazes de reagir, não esperando que eu sempre tão calmo tivesse tanta ousadia.E antes que minha culpa me consuma, como responsável que sou por tudo, logo também não estarei respirando. Eu sou o pai. Eu permiti que chegasse a este ponto. Eu executei a sentença, e também devo saldar minha dívida. Doce Kerolline, lhe deixo agora para sempre com um doce beijo, e creio que encontrarás 4 corpos ao invés de 3. também verás um envelope que selará a paz em nossa casa mais uma vez. Adeus, amada minha! “
quem dera usasse Deus de bondade para com todos, e que todos de tudo tivessem consciência. talvez sabendo das outras mentes, nossa própria resguardasse mais descência.
“ Papai, mamãe, sentimos muito por tudo isso. Sei que não somos bem quistos por vós, nem tão pouco pela sociedade onde vivemos. Simplesmente foi a gota d’ água a atitude de Tomás desta vez. A vida inteira escondemos nossa índole. A vida inteira ocultamos seus atos cruéis assumindo a culpa em seu lugar, sem que ninguém soubesse. Quando alguma vez praticamos qualquer mal foi por intuito desta maldição que temos por irmão. Fomos induzidos a cada erro, cada maldade por esta mente que agora encontrou seu destino neste punhal que ele próprio adquiriu com intuitos por demais exacerbados. Talvez vocês nunca soubessem da verdade, pois os amamos demais. Tanto que não nos permitíamos revelar a natureza deste irmão traiçoeiro que há tanto desistimos de salvar. Não fosse este derradeiro ato de loucura seu, jamais escreveríamos esta confissão a vós.
Chegou em casa neste fim de tarde num acesso de raiva, vindo das farras, dos bares e das meretrizes. Trouxe consigo este sinal de morte por baixo das vestimentas, intentando atacar meu irmão durante a ceia que sempre partilhamos juntos. Graças aos céus que antes da punhalada certeira durante a prece, visionei a terrível arma e o agarrei com força impedindo o pior. Pressionado por nós, confessou que desejava nos assassinar friamente, indo depois a vosso encontro para vos exterminar! Assim, a culpa desta chacina cairia como sempre sobre nós e ele ficaria com os bens de nossa família. Pai, mãe, isso foi o cúmulo. Sabemos que foi um erro, mas isto foi o cúmulo!
Tão logo o entregaríamos ás autoridades competentes para que dessem cabo deste louco. Mas antes que eu percebesse, se desvencilhou de meus braços e jogou-se contra meu semelhante. Não pude permitir! Tomei do punhal que erguia, e o enterrei em seu coração.
Sei que é difícil de acreditar meus tão sofridos pais, mas é a verdade. Por isso deixo com este corpo sobre a cama que foi nosso leito um dia, este bilhete. E partimos para sempre mesmo com dor no coração, sabendo que não mais os veremos. Dizemos adeus e pedimos perdão. Não foi o correto, mas foi por amor a quem sempre nos amou apesar de tudo. Foi por amor!"
e quando finalmente tudo se descobre, se lastima não se ter observado tudo. quem sabe onde esse tudo sempre se esconde? talvez nas cartas que se encontram em oculto.

sábado, setembro 29, 2007

O Veredicto

Por Mephisto

Para Roberto Brandão e Elton Jaeger

O fato de haver condenado à morte um homem que sabia inocente em nada perturbava a consciência tranqüila e arejada do juiz Maastricht. Como sou Mephisto, e posso perfeitamente devassar a consciência de quem quer que seja, garanto-vos que, ao assinar a sentença, o nobre magistrado ainda mais se encantava e exultava com o peso de sua pena, expressão magnífica de seu imenso poder.
Pode parecer estranho, mas as execuções – sobretudo as demoradas - não me fascinam. Em nada se comparam aos momentos que antecedem ao golpe do cutelo. Aí, sim, pode-se experimentar alguma sensação prazerosa. Digo-vos que o medo da morte mais que iminente sepulta toda e qualquer emoção de um condenado, salvo, nos espíritos mais elevados, o arrependimento. Mas, quando se é inocente, é o ódio contra os seus algozes o que verdadeiramente dignifica o imolado e o fazer merecer a própria pena.
Mas o juiz Maastricht deliciava-se em ver as execuções de suas rudes penas. Pouco lhe importava o que ia na mente dos que atirava nos patíbulos e calabouços. Mais que isso, exigia do verdugo que amputasse um bocado do executado.
Dispostos numa ampla prateleira, que ocupava uma das paredes da tenebrosa sala de audiência, havia frascos de salmoura. Narizes, olhos e orelhas - e, bem assim, diversas outras macabras reminiscências - mergulhados em conserva, flutuavam pachorrentamente, para o horror dos réus e regalo do magistrado.
E já eram tantos os frascos a atormentar os olhos e as almas dos interrogados, e tantos mais ainda eram os que seriam enforcados, que o nobre magistrado cuidara, com muita previdência, de encomendar uma nova prateleira de madeira de lei, destinada a ocupar a parede que ficava à sua retaguarda, mesmo que – sejamos sinceros – lhe fosse desagradável desalojar a sacrossanta imagem do crucificado.
Porém, no dia mesmo em que a nova prateleira chegou, o magistrado Maastricht não compareceu à audiência. O escrivão acorreu à casa do juiz e o encontrou em delírio. Estava sentado à mesa de jantar, na posição em que, nos tribunais, costumam ficar os réus. Olhava para a cabeceira vazia e jurava inocência. Pedia clemência a um magistrado bem mais poderoso que ele próprio e cujo nome não me é permitido pronunciar, dada a minha condição de demônio de superior hierarquia.
O magistrado não passou um dia, sequer, no manicômio. Eu bem ouvi os seus pensamentos. Mas não os direi. Este é um deleite que não compartilho com ninguém. Direi, apenas, que o veredicto foi implacável. Porque, mal os sinos da catedral soaram as vésperas, a cabeça do magistrado estalou, como se alçada por uma corda bem ajustada ao seu pescoço; e o seu corpo, imediatamente, entrou em convulsão. Os pés de Maastricht tremiam em pleno ar, varridos por fluxos contínuos de espasmos violentos. Mas somente eu fui testemunha de sua longa agonia. Somente eu, mais ninguém.
Daí por que ninguém pôde explicar as marcas profundas fincadas no pescoço do nobre homem. E muito menos a mutilação que, admirados e confusos, verificaram os médicos no corpo do magistrado. Sabe-se apenas que dentro nova prateleira, justamente no lugar onde o crucificado deveria estar, havia um enorme frasco de salmoura. E que no imenso e translúcido pote de conserva flutuava um dedo cruelmente decepado, adornado por um anel de magistrado.
Se eu pudesse jurar, diria claramente que nada tive

quarta-feira, setembro 26, 2007

Seja um colaborador!

A Irmandade das Sombras é uma sociedade aberta a todos os que querem fazer parte dela. Não há necessidade de qualquer formalidade, todos são bem vindos. Temos uma espécie de "sede" no forum do site Recanto das Letras, que foi onde tudo começou, lá trocamos idéias e opiniões. Aqui no blog aceitamos qualquer tipo de contribuição desde que seja no estilo, assim se você deseja contribuir ou participar do nosso grupo já sabe onde nos encontrar

Abaixo deixo o link para o nosso tópico no fórum do Recanto das Letras

http://recantodasletras.uol.com.br/forum/index.php?topic=2056.0

Caso queira entrar em contato conosco pode nos enviar um e-mail para lhf_87@hotmail.com, que é meu e-mail pessoal

Abraços a todos que passarem por aqui


Linx

sábado, setembro 22, 2007

Irmandade das Sombras - 1 ANO!!!

Hoje é um dia especial a todos nós. Nossa irmandade literária completa um ano de existência. Estamos, vivos, unidos e lutando pela ideal de valorizar o terror como Arte. A luta é ardua, cheia de inimigos e obstáculos, mas ainda estamos de pé, fazendo terror e a cada dia aumentamos e ganhamos mais talentos.
A todos que passarem aqui saibam, querendo vocês ou não estamos vivos e fazendo sucesso. E se você for querer ser mais um de nossos inimigos que venha, pois não temos medo. Caso seja um admirador da Arte sombria/Fantastica estamos de portas abertas para você. Una-se na nossa luta pela valorização do estilo. Seja um irmão também, estamos de portas abertas!

Abraços a todos

Linx

sábado, setembro 15, 2007

As Relíquias da Irmandade das Sombras

Por Celly Borges

"Eu vou morrer... Eu vou morrer!"
– E agora, você vai nos dizer a verdade?
– Mas eu não sei de nada...
– Ok, você gosta de se afogar às vezes, não é?
Cesar fez um movimento com a mão para o capanga que segurava a cabeça de Alexandre que a empurrou outra vez para dentro do tonel cheio, não até a borda, pois, depois de tanto impelir o infeliz para dentro, o chão já estava todo encharcado pela água que transbordara.
– Bem, ele ao vai falar, então, talvez realmente não saiba mesmo do que estamos falando... Tire-o daí! – Ordenou Cesar.
– Eu não o conheço, juro – Alexandre estava ofegante, mal conseguia permanecer em pé. – Eu juro!
– Tudo bem, não jure, eu acredito! Deixe-o ir!
– Mas chefe, ele vai contar tudo para todos!
– Não seja tolo, Ricardo, quem, em sã consciência, acreditaria na existência das re

liquias da Irmandade das Sombras? – Cesar sentou em uma poltrona que havia trazido para o galpão para que sua caracterização de gângster. – E além do mais, ele já está condenado por outras gangues aí de fora. Alexandre não durará muito para que tenha tempo de abrir a sua boca.
Durante um longo tempo se fez silêncio, que foi quebrado por Ricardo.
– Mas essa relíquia, ela existe mesmo???
– É claro, idiota. Ou o que você acha que cinco pessoas estariam fazendo aqui, presas e dopadas? – Rosnou Cesar, apontando para a cela logo à sua frente, ele se acomodou na poltrona. – Precisamos encontrar o fundador, o líder, pois a Relíquia da Irmandade das Sombras está fragmentada entre seis pessoais, e já temos algumas.
"O que você acha que fazem aqui o Paulo, o Henry, o Luciano, a Hell e a Celly?
"Precisamos da sexta parte, a parte central, ou seja, a Relíquia está com o senhor de todos eles, Linx.
"Mas eu não sei como encontra-lo, e não poderei saber também como montar a tal Relíquia que me dará todo o poder das trevas."
Entrementes, Cesar dera as costas justamente para a cela em que se encontravam os cinco Irmãos das Sombras, quando eles se restabeleciam e tiraram do bolso interno das capas negras as verdadeiras Relíquias as Irmandade das Sombras, as uniram, formando um pentagrama e a sexta parte surgiu em meio a uma luz escarlate, era a parte central e em menos de um minuto – tempo que Cesar e seu capanga levaram para perceber o que acontecia –, Linx apareceu em meio aos cinco, igualmente vestido de negro.
Linx fora despertado de seu sono eterno, seus olhos vermelhos transmitiam toda a sua aversão pela humanidade, cultivada por tantos e tantos séculos e agora vinha vingar seus Irmãos.
Naquela noite, a Irmandade das Sombras se reuniu e a escuridão tomou conta de todo o Universo, e as trevas dominaram toda forma de luz, a vingança fora estabelecida.
E Linx, juntamente com os cinco Irmãos, recrutaram novos seguidores para livrar o mundo de toda forma de vida não fantástica!

sábado, setembro 08, 2007

É ISSO AÍ, AMIGOS DAS SOMBRAS! AGORA TAMBÉM TEMOS VÍDEOS! DIVIRTAM-SE!


Henry Evaristo

Transformação completa de UM LOBISOMEM AMERICANO EM LONDRES

Vejam a mais espetacular transformação de um homem em um lobisomem de todos os tempos!


Sua Contribuição!

Não se esquecendo que se você tiver interesse em ter seu texto postado em nosso blog, pode nos enviar seu material. Meu e-mail é lhf_87@hotmail.com
Junte-se a nós, seja um membro da Irmandade das Sombras
Linx

E o Blog Continua sua Jornada!

A cada dia que passa melhoramos o blog e nossas visitas dizem claramente que estamos no caminho certo. Nossa jornada por um Underground do terror no Brasil continua e cada dia mais perto do Objetivo!
Abraço a todos os visitantes!!!
Linx

Sinfonia da Escatologia

Falando em poesias, to postando uma das minhas, espero que gostem

Por Linx

Gritos de dor
No processo final
A morte condena a todos
No prelúdio fatal

Muitos correm
Desesperados sem parar
Mas ninguém escapará
Da justiça que vai chegar

Sofrimento, agonia, angustia
As lagrimas correm aflitas
Pelos rostos desesperados
Dos milhões de condenados

Muito sangue ainda se derramará
Antes que ele na terra possa pisar
E sobre os cadáveres das vitimas
Dar fim a sinfonia

Estação Inferno

Por Luiz Poleto

Desci as escadas da estação Cinelândia muito rapidamente para tentar entrar na composição do metrô que já soava o sinal de que as portas iam fechar-se. Como de costume, tive que trabalhar até tarde e já passava um pouco das oito horas da noite quando peguei o metrô, que, devido ao horário, não estava cheio. Este era um dos pontos positivos de trabalhar até tarde: além do ligeiro aumento do salário no final do mês, o metrô normalmente estava vazio. As vezes eu até conseguia um lugar para sentar, e hoje, felizmente, foi um desses dias. Sentei-me em um banco vazio, perto da janela – que aliás, não serve para muita coisa, dada a escuridão que consome aqueles intermináveis túneis.
Quando a composição iniciou a viagem, abri minha mochila para pegar o livro que vinha lendo. Lembro-me de ter xingado qualquer coisa quando percebi que o livro não estava ali; "devo ter deixado em cima da escrivaninha do quarto", pensei, chateado por ter que passar toda a viagem olhando através da janela para a escuridão que nos envolvia como uma onda que, surgida em um mar tempestuoso, envolve um barco pesqueiro qualquer perdido na tempestade, sem qualquer chance de defesa. Felizmente a viagem é curta e leva menos de 20 minutos; o grande problema é passar estes 20 minutos olhando para a escuridão. Einstein certa vez usou uma analogia para explicar a sua Teoria da Relatividade, era algo como "Uma hora passada com uma linda mulher parece um minuto, enquanto um minuto sentando em cima de um formigueiro parece uma hora.", pois, neste exato momento, eu sentia-me sentado em cima de um formigueiro.
Quando chegamos à estação seguinte, apenas algumas pessoas entraram na composição, ocupando o resto dos lugares que estavam vagos. Ao entrar no túnel, eu já estava um bocado sonolento, com os olhos cerrados, tentando, em vão, enconstar minha cabeça na janela, quando, por um momento, as luzes da composição começaram a piscar, como se estivessem querendo falhar, espetáculo este que durou apenas alguns segundos. Subitamente, a composição desacelerou brevemente, para em seguida retomar a velocidade normal, o que resultou em um tranco um pouco brusco, o que fez com que os passageiros sacudissem levemente em seus assentos; alguns mau-humorados, como de costume, reclamaram do condutor e balbuciaram alguns palavrões. Enquanto nos recompunhamos do breve saculejo, as luzes da composição piscaram novamente, desta vez com um intervalo maior, e pude sentir que a composição perdia novamente a velocidade. Não dei muita importância para estes acontecimentos pois estava quase pegando no sono, e, à medida que meus olhos foram se fechando, sentia meu corpo leve, e minha mente em um estado de torpor muito agradável.
Acordei subitamente, após uma freada brusca da composição em conjunto com um ruído ensurdecedor do atrito de metal contra metal – o que fez lembrar-me de uma antiga professora de química em minha época de ginásio, que quando queria chamar a atenção da turma, tinha o hábito inconveniente de arrastar, com força, as unhas no quadro negro, provocando um som enlouquecedor -, o que fez com que meu corpo fosse arremessado contra o assento à minha frente e meus pensamentos fossem rapidamente desligados do que quer que seja que eu estivesse pensando naquele momento. Movi meus braços tentando apoiar-me em qualquer coisa; tive, por alguns breves segundos, a sensação de estar despencando do vigésimo andar de um prédio em queda livre, tentando desesperadamente agarrar-me a qualquer coisa que minhas mãos pudessem alcançar. Consegui proteger meu rosto com as mãos antes que ele batesse contra o assento, o que resultou em uma das mãos latejando por algum tempo devido ao impacto.
O ruído, que pareceu um eternidade dentro de meus ouvidos, finalmente cessou e a composição pareceu estar totalmente parada. Algumas lâmpadas, que outrora iluminaram o interior do vagão, estavam naquele momento apagadas, e as poucas que restaram resumiam-se a funcionar mal, piscando como os fogos de artifício que iluminam intermitentemente a orla da praia durante a virada do ano. Olhei ao meu redor e vi algumas pessoas no chão, tentando levantar-se com alguma dificuldade. A maioria, como de costume em qualquer situação fora do cotidiano, estavam em desespero, chorando, gritando, rezando. A escuridão que assombrava o túnel ao nosso redor parecia densa a ponto de querer invadir e tomar os poucos focos de luz restantes. Por um breve instante tive a impressão de que a escuridão estava se movendo e sorria maliciosamente para nós.
Apesar do pânico tomar conta das pessoas dentro daquele vagão, consegui manter a calma. Dirigi-me em direção ao comunicador que permite contato com o condutor, na esperança de conseguir qualquer informação que pudesse nos acalmar. Não tive dificuldade em remover a tampa de acrílico que impedia que o botão se movimentasse. Nesse momento algumas pessoas já estavam um pouco mais calmas, ajudadas pelos poucos que ainda estava lúcidos. Girei o botão para a posição emergência e aguardei, em vão, por uma resposta do condutor. Senti um calafrio quando não obtive resposta; ou o rádio estava quebrado, ou o pior tinha acontecido: o condutor havia morrido com o impacto. Entre gritos, choro e frases desconexas, ouvia-se especulações sobre as possíveis causas daquela parada repentina, mas a verdade é que ninguém tinha a mínima idéia do que realmente tinha acontecido.
Sem o comunicador, que nos permitiria saber se a ajuda estava próxima, e sem um único telefone celular que estivesse com sinal suficiente para fazer uma chamada, não tinhamos muito o que fazer. Lembro-me de alguém ter sugerido que tentássemos abrir as portas, idéia que na hora foi contestada por muitos dos presentes. "E se cairmos em cima dos trilhos eletrificados?", "E se outra composição passar ao lado e atropelar todos que estiverem na linha?". Os argumentos eram muitos, e válidos inclusive, porém, algumas pessoas não queriam ficar muito tempo ali dentro sem saber o que aconteceria em seguida. Caminhei em direção à porta que separa os vagões, afinal, seguindo por ali, estariamos perto de passageiros de outros vagões e poderíamos, de dentro da própria composição, tentar chegar perto do condutor e saber o que houve, se ele por acaso estivesse vivo. Quando me aproximei da porta, no entanto, um frio percorreu-me toda a espinha, fazendo-me arrepiar e sentir uma estranha sensação de medo e solidão, em uma amargura que por um instante tomou conta de meu coração; ao olhar através do vidro, a única coisa que vi foi a escuridão que nos assolava desde o primeiro túnel que entramos, a mesma escuridão que envolvia a composição como uma onda que, surgida em um mar tempestuoso, envolve um barco pesqueiro qualquer perdido na tempestade. Com os olhos arregalados e sentindo o corpo mole, corri na direção oposta, tentando alcançar a outra porta que nos ligava ao outro vagão. Para meu desespero, a única coisa que vi foi a mesma escuridão. Era como se o nosso vagão tivesse sido abandonado no túnel.
- Os outros vagões sumiram! – gritei, sentindo a respiração ofegante.
- Como assim sumiram? – perguntou-me um outro passageiro, que apesar de visivelmente abalado com a situação, tentava manter a calma.
- Olhem através dos vidros! Não há nada a não ser escuridão! Estamos abandonados aqui!
Arrependi-me profundamente de ter pronunciado as últimas palavras, pois após a confirmação visual de que estávamos abandonados ao destino, o pânico instaurou-se novamente; recomeçaram os gritos, choro e rezas.
Quando finalmente nos acalmamos, decidimos, por unanimidade, tentar abrir as portas do vagão e tentar achar uma saída para fora daqueles túneis. Apesar de ter concordado, a idéia não me agradava muito, pois a escuridão do lado de fora parecia agora densa a ponto de querer empurrar o vagão, levando-nos sabe-se lá para onde. Juntamente com outros cinco homens que ali estavam, começamos a forçar a porta, que parecia muito mais forte que todos nós; quanto mais fazíamos força para abrí-la, mais ela fazia força para manter-se fechada. Cheguei a pensar por um momento que o vagão não queria que saíssemos dali.
Inopinadamente, a porta pareceu ceder aos nossos esforços, deslizando bruscamente para os lados, o que produziu um estampido ao terminar de abrir que nos assustou brevemente. Segundos após a porta ter se aberto, um cheiro horrendo entrou, trazido por uma leve brisa, era um misto de azedo e salgado, porém denso e penetrante; naquele momento senti um enorme embrulho no estômago, como se ele estivesse tentando virar pelo avesso sem o meu consentimento. Passado o espanto, e quando o cheiro foi levemente dissipado, viramo-nos para a porta a procura de um caminho a seguir, porém, não conseguíamos enxergar um único palmo a nossa frente. A escuridão que me acompanhava desde o primeiro túnel estava agora tão densa e tão sufocante que chegava a nos ofuscar.
- Vou descer – eu disse, olhando para o chão tentando calcular a altura a que me encontrava deste.
No momento que me preparava para descer, no entanto, fui surpreendido por algo, no mínimo, inesperado. Quando pus o pé para fora do vagão, senti que este chocou-se com algo sólido e rígido. Depois de muito tatear com os pés, concluí que tratava-se de uma plataforma, ou algo no mínimo parecido. Arrisquei apoiar-me com os dois pés, o qual fui bem sucedido. Não fazia o menor sentido, ninguém entendia nada. Como poderia haver uma plataforma no meio de um túnel? E por que diabos não passava nenhuma outra composição por aqueles túneis? A situação que já não fazia nenhum sentido antes, fazia menos ainda agora.
Caminhei cuidadosamente por cima daquela plataforma, cada passo era dado de forma muito cautelosa para evitar cair ou tropeçar em algo inesperado. Apesar de ser bem larga, não consegui saber o quão larga era, mas o comprimento era grande; já havia dado cerca de cinquenta passos sem cair ou tropeçar. Cada passo era acompanhado de meus braços totalmente esticados à frente, como se estivesse buscando uma parede imaginária para me guiar. Algumas pessoas começaram a deixar o vagão e a vir atrás de mim, depois de perceberem que a plataforma era aparentemente segura. O resto, relutantemente, concordou em permanecer no vagão para o caso de alguma ajuda aparecer.
Não sei quanto tempo passamos caminhando naquele passo vagaroso e precavido, mas tenho certeza de que foi bastante. Sempre à frente naquela jornada rumo ao desconhecido, fora eu quem encontrou uma porta fechada à nossa frente. Eu estava tateando cegamente, com os braços esticados a frente, quando senti que minhas mãos haviam tocado alguma coisa. A textura lembrava madeira revestida com fórmica, e sua largura media pouco menos de um metro; quando encontrei a maçaneta, fria e com uma leve camada do que parecia ser ferrugem, tentei girá-la e percebi então que a porta estava trancada, o que não era surpresa. Como não havia qualquer maneira de prosseguir além daquele ponto, a solução foi arrombar a porta, o que se mostrou uma tarefa muito simples quando executada por mais de uma pessoa ao mesmo tempo.
Ao abrir a porta, quase perdi os sentidos quando novamente aquele cheiro azedo que nos beijou levemente a face quando abrimos a porta do vagão tornou a beijar-nos ao abrir esta porta; desta vez, porém, o cheiro era mais forte e mais azedo. Quando meu cérebro se acostumou com o cheiro, olhei para o lugar que a porta nos conduziu. Duas lâmpadas fluorescentes dispostas horizontalmente em uma calha suja tentavam quase que inutilmente iluminar a sala úmida e quadrada, de aproximadamente vinte metros quadrados, totalmente vazia, com que nos deparamos. As paredes de pedra sem nenhum tipo de acabamento tinham cerca de três metros de altura e formavam ângulos de noventa graus com o teto, tambem sem acabamento, de onde surgiam alguma goteiras. Demorei a reparar uma escada embutida na parede oposta à porta em que estávamos. Os degraus pareciam de ferro e estavam bastante maltratados pela ação do tempo, encontrando-se totalmente oxidados. Olhando para a parte do teto aonde estava a escada, percebi uma pequena entrada de aproximadamente um metro quadrado. Ali jazia toda a nossa esperança de sair daquele lugar.
Escolhemos aleatóriamente um candidato para se aventurar para aquela extremidade. Não demoramos nesta escolha pois a vontade de encontrar uma saída era compartilhada por todos que ali estavam. Quando o sujeito deu o primeiro passo para dentro da sala, no entanto, o inesperado – e inimaginável, diga-se de passagem – aconteceu. As paredes, antes de pedra e sem nenhum acabamento, adquiriram uma cor avermelhada, tão forte que parecia brilhar, com alguns detalhes em amarelo, e pareciam dançar lentamente ao som de uma lenta e hipnótica música eletrônica. O que antes era o teto parecia agora um amontoado de chamas que teimavam em retornar ao lugar de onde queimavam, sem fazer, no entando, som algum. O chão tornou-se um abismo aparentemente sem fim, escuro e sombrio como a escuridão que vinha nos acompanhando desde o início. Passamos a ouvir gritos de agonia e dor profunda, parecia que muitas pessoas estavam sendo torturadas ininterruptamente. Os gritos ecoaram dentro de minha cabeça, como se naquele momento meu cérebro tivesse se transformado em geléria, deixando a caixa cerebral totalmente vazia. Aquele cheiro, azedo, parecia jorrar aos montes de dentro do abismo, desta vez sem trégua ao nosso olfato. O pobre sujeito, que já havia posto um dos pés dentro da sala, não conseguiu segurar-se e despencou, rumo ao desconhecido – ou rumo ao inferno, como um dos presente teimou em apelidar aquela sala. Nada pudemos fazer quando um grito forte e desesperado, recheado de terror foi proferido de sua garganta. Atônitos, ainda ponderando se o que estávamos assistindo era real ou apenas um reflexo maldoso de nossas mentes sobre nossos corpos cansados, só pudemos olhar a queda até que o som do grito fosse sumindo, tornando-se cada vez mais distante, como uma música em processo de fade-out.
Ainda sem conseguir compreender totalmente o que havia ocorrido, ficamos parados ali na porta, contemplando o que parecia ser o ponto mais distante do universo, o ponto aonde ninguém jamais chegara. Se eu fosse religioso, teria acreditado que aquilo era uma das entradas do inferno como alguém disse anteriormente. Tomada pelo desespero que nos consumia, uma das pessoas que integrava o grupo virou-se para fugir, gesto que foi acompanhado por todos os presentes, mas, se aquilo era o inferno, ele não estava disposto a nos deixar fugir. Fomos impedidos de correr quando uma força invisível começou a nos sugar em direção ao abismo, tal qual os integrantes de uma nave espacial que tem um buraco na fuselagem são puxados pelo vácuo. Não havia aonde segurar, e a força era demasiadamente forte. Os mais fracos foram puxados sem oferecer qualquer resistência. Eu consegui me segurar na porta com toda a força que ainda me restava, vendo, impotentemente, as pessoas sendo tragadas para aquele buraco. Alguns tentavam agarrar-se a mim na esperança de permanecerem vivos, e eu tentava ajudá-los a ficar, mas a fome do abismo era maior; eu ouvia os gritos, o choro, sentia o desespero de cada pessoa que passava por mim e era engolida por aquilo. Eu chorava, e mesmo as lágrimas que escorriam para for a de meu rosto era também sugadas pelo insaciável abismo; sentia minha mente derreter como geléia a cada gemido proferido pelo abismo, tive a impressão de que aquilo estava vivo e falava – na verdade, eram grunhidos lentos e abafados, grave como se tivesse sido pronunciado por alguém sem as cordas vocais.
Alguns minutos depois da última pessoa ter sido engolida, minha resistência estava-se esgotando; quando, quase desistindo de segurar-me na porta, ouvi o barulho vindo do abismo cessar, e a força que nos puxava subitamente parou. Caído no chão totalmente tomado pelo cansaço, olhei para trás e vi a mesma sala que viramos quando abrimos a porta. As mesmas paredes de pedra, a mesma escada enferrujada na parede. Fechei a porta e, com o coração acelerado, a respiração ofegante, os olhos inertes pelo terror, tentei correr de volta ao ponto de origem, mas minhas pernas não obedeceram, senti que a escuridão novamente avançava sobre mim; cai inconsciente no chão, com o corpo totalmente inerte.
Quando acordei, estava em um quarto de um hospital qualquer no centro do Rio de Janeiro. O médico me disse que eu estava bem, tivera apenas um desmaio devido à fadiga e recomendou-me diminuir um pouco o ritmo de trabalho. Ao perguntar como havia chegado ali, limitou-se a dizer-me que eu fora trazido por funcionários do metrô, após ter sido encontrado desmaiado na estação da Cinelândia, alguns metros após a entrada do túnel em direção à Zona Norte. Cheguei a retornar à estação alguns dias depois para informar-me sobre o que realmente havia ocorrido, mas tudo o que sabiam é que alguns transeuntes chamaram a segurança ao me ver passar a placa de "Acesso Restrito. Somente pessoal devidamente identificado e autorizado, de acordo com a legislação interna em vigor." e sumir na escuridão. Os funcionários disseram que nunca houve no metrô um acidente grave como o que eu havia reportado; tampouco sabiam da existência de qualquer plataforma dentro dos túneis ou de qualquer sala com a descrição que eu dera.
Apesar de alguns colocarem em dúvida minha sanidade, diante da falta de qualquer evidência que possa comprovar os eventos que presenciei, até hoje, sempre que fecho meus olhos, ainda sinto aquele cheiro azedo impregnando o meu nariz, e ainda posso sentir a densa escuridão avançando em minha direção tentando tragar-me para algum lugar que desconheço qual seja. Quando cai a noite e me recolho para a cama para tentar dormir, ainda posso ouvir os gritos recheados de dor e angústia que alcançavam nossos ouvidos partindo de dentro do abismo; ainda posso ouvir, claramente, aquele estranho grunhido proferido pelo abismo, como se estivesse me fazendo um convite.

quarta-feira, setembro 05, 2007

LIVRO DE VISITAS

Alô, alô! Agora o blog da Irmandade das Sombras também tem seu livro de visitas. Vá lá no rodapé da página que você o encontrará. Deixe sua mensagem nos elogiando muito e dizendo que não pode mais viver sem ler nossos textos horripilantes, ok!?

Abraços a todos!



Henry Evaristo