sábado, agosto 07, 2010

A Libertação do Deghammon




Por Rogério Silvério


Se de fato existirem deuses que regem nossos destinos sombrios, que eles se apiedem de nossas almas miseráveis neste vale das sombras da morte que é a Terra!

Estou velho, agora, acabado e numa cadeira de rodas, mas minha mente continua lúcida e minha memória perfeita. Minha insônia crônica só é diminuída quando tomo o Nembutal, o Gardenal e outros barbitúricos. Assim, sedado, consigo algumas poucas horas de sono, tendo ao meu lado o fiel pastor alemão Átila, um cão que é o meu único e melhor amigo.

Passei uma boa parte de minha vida num presídio, pagando por crimes que dizem que cometi. Mas o que fiz foi apenas me defender.

Agora, livre depois de pagar por tudo aquilo que dizem que eu cometi, só me restam as lembranças sombrias e aterrorizantes de um passado metuendo e tenebroso.

Vou contar minha história, vou contar a verdade. Tudo será escrito nesta folha de papel e guardado na gaveta de minha escrivaninha como uma missiva reveladora a posteridade. Por favor, não me chamem de louco!Não sejam levianos e preconceituosos! Existem mistérios diabólicos aqui mesmo neste planeta amaldiçoado, segredos arcaicos de um mundo sobrenatural, invisível aos olhos das pessoas comuns. É todo um universo invisível que existe ao mesmo tempo que o nosso. Um mundo onde vagam estranhas e malditas criaturas, mortas ou não-humanas.

Confesso com toda a sinceridade de minha alma que não fui eu quem matou meus amigos Linx, Paulo Soriano, Henry Evaristo, Celly e Well. Eu juro, não fui eu quem os matou! Que suas pobres almas repousem em paz nos mundos edênicos do Além! Mas, repito, não fui eu quem os matei naquelas férias de verão nas regiões sombrias da Mata Atlântica, em Santa Catarina.

Tudo começou numa manhã de Fevereiro. Tínhamos combinado pescar naquela floresta sombria na encosta da Colina dos Ventos Sussurrantes. Saímos, cada qual com sua mochila às costas, pela trilha que iniciava na descida de uma grande duna nas terras sáfaras da restinga adjacente.

Lembro que Paulo tinha nos alertado sobre o fato de que a névoa insólita e esbranquiçada como uma alma penada estava por demais densa e cintilante naquela manhã sombria.

Well comentava com Celly de que parecíamos estar atravessando os portais que levam a uma outra dimensão.
Irônico, Linx, com os caniços com molinetes sobre o ombro, frisou que se estivéssemos deixando o mundo dos vivos através de algum mecanismo desconhecido da natureza por um caminho hiperespacial telúrico, seria um alívio, diante das desgraças que assolam o plano terrestre, com suas guerras, matanças e egoísmo desenfreado.

Well achou que o ambiente estava enevoado demais para a época. Logo a noite chegou e uma luminosidade débil parecia vir da lua. Paulo era o único que levava a lanterna, iluminando também precariamente o caminho a frente.

Perguntei a Henry onde ficava o lago do bosque onde, segundo ele nos havia dito, estariam os peixes suculentos à espera de nossos anzóis.

Através de uma picada estreita em meio a um oceano de folhas e arbustos, caminhamos durante mais de uma hora, sempre com aquela névoa pegajosa a nos envolver com seus afagos gélidos.

Paulo e a bela Well foram os primeiros a notarem a mudança no ambiente. Houve uma lufada quente de vento que turbilhonou as névoas, dispersando-as como revoadas de espectros na danação do Inferno.

Celly indagou a Linx se estávamos perdidos naquele bosque com fama de assombrado. Linx meneou a cabeça, sombrio, enquanto parava para beber a água de seu cantil, enxugando os lábios com o dorso da mão. Foi ele também o primeiro a sentir que algo nos observava, algo terrível, invisível, grotesco, malévolo. Uma coisa inominável oriunda, não de nosso Cosmo, mas dos reinos demoníacos do caos de ultra-mundos!

Indaguei a Linx o motivo de sua apreensão. Disse-me que tinha a sensação de estarmos sendo espreitados.

De repente Paulo confirmou o que Linx suspeitava, chamando-nos a atenção para um cheiro nauseabundo pairando no ar como um perfume maldito da morte.

Enxofre!, gritei. Parece enxofre!

Linx disse que conhecia certos elementos químicos e substâncias. Não era enxofre, disso ele tinha certeza. Era um aroma bizarro, disse ele, um aroma animalesco, bestial, talvez não do mundo dos vivos, mas de um ser de lugares além de onde os mortos peregrinam na tribulação cíclica do purgatório.

Celly entrou em pânico e começou a chorar quando ouvimos aquele rosnar medonho em algum ponto entre as sombras do bosque maldito.

A bela Well ajudou Celly, amparando-a e dizendo que talvez fosse algum animal herbívoro da floresta.

Henry assentiu, retirando de sua mochila uma arma, um revólver calibre 38.

Perguntei-lhe, nervoso, por que diabos trouxera aquilo, no que ele me retrucou, dizendo que numa floresta como aquela poderia haver alguma fera, por exemplo uma sussuarana faminta vagando por ali, então, antes de vir, achara melhor se prevenir, trazendo a arma consigo.

Foi nesse momento que notei o olhar estranho de Henry. Há muito eu suspeitava de seus estudos estranhos, de seus gostos por livros medonhos e proibidos, particularmente grimórios e formulários de magia negra. Certa vez eu o vira estudando as páginas mofadas daquele tenebroso Necronomicon, o que me causara um arrepio na espinha, pois eu sabia os conhecimentos malignos que aquele livro maldito encerrava!

Paulo Soriano, perspicaz, notara algo também. Ele sabia do envolvimento de Henry Evaristo com rituais necromânticos e esotéricos, evocações proibidas, no passado recente. Henry, com sua sede de conhecimento de coisas do Ocultimo o levara a caminhos do fanatismo, fazendo com que fosse expulso de seitas místicas da selva amazônica, onde um templo piramidal estaria sendo construído para atrair forças energéticas de uma entidade interdimensional malévola que alguns chamavam de Deghammon, o devorador de almas.

A idéia da pescaria naquela região distante tinha sido de Henry. Mas agora, de algum modo eu sabia que ele nos usara o tempo todo, ele tinha segundas intenções naquela pescaria, eu já desconfiava ligeiramente.

Um novo urro bestial fez-se ouvir no silêncio críptico do bosque das assombrações metuendas.

Celly abraçou-se a Linx, apavorada diante daquele som grotesco e demoníaco.

A bela Well gritou para Henry, pediu-lhe que atirasse para o alto ou para as moitas que se agitavam nas proximidades, para assustar a besta, quem sabe. Atire, ela gritou, atire para espantar esse bicho, fera ou demônio do inferno! Atire, vamos! Atire, Henry!

Nesse momento foi que eu e Paulo vimos o cintilar da loucura nos olhos sombrios de Henry. Olhando-nos de um jeito perverso e zombeteiro, Henry mirou em direção a Well com o revólver e soltou uma gargalhada diabólica, uma gargalhada insana, cruel, maquiavélica. Vi quando o gatilho foi pressionado e a bala alojou-se na testa da bela Well, que caiu sobre um pequeno arbusto, morta, os olhos esgazeados pelo terror ao contemplar a morte.

Celly soltou um grito de pavor em meio a choros convulsos de desespero. Linx tentava acalmá-la, afagando-lhe os belos cabelos.

Eu e Paulo gritamos a Henry, dissemos que ele estava enlouquecido, clamamos para que abaixasse a arma.
Tarde demais, seus tolos!, disse-nos com um brilho insano nos olhos sombrios. Vocês foram a isca perfeita para atrair o todo-poderoso Dhegammon, aprisionado na quarta dimensão por magos da Magia Branca! Agora, através de meus rituais secretos, consegui atrair vocês todos, os sacrifícios humanos necessários para que Dhegammon retorne ao mundo dos mortais, e mais uma vez estabeleça seu reinado de terror e carnificina, num império apoteótico de violência e força! Não estamos mais numa simples floresta, meus amigos, pois ao atravessarmos os portões das névoas místicas, adentramos uma região sub-etérica do espaço tempo, estamos num limbo interdimensional, num mundo maldito onde a matéria existe ao mesmo tempo que o espiritual! E agora, em louvor ao todo-poderoso Dhegammon, vocês todos serão mortos como animais que são, servindo de oferendas ao Comedor de Corpos e Almas, ele , o Dhegammon, aquele que foi e sempre será, aquele que atravessa os ciclos negros da vida telúrica, os abismos gélidos do iliáster protoplasmático onde as forças místicas são geradas!

Paulo indagou-lhe, num grito: E que você receberá em troca disso? Libertar uma força inumana em troca de que, Henry? Acorde, não deixe a loucura dominar sua mente!

Tolo!, disse Henry, apontando a arma para Paulo. Eu terei a vida eterna aqui mesmo NO PLANO FÍSÍCO! A imortalidade do corpo, Paulo, foi o que Dhegammon, senhor dos abismos tenebrosos dos espaços negros interdimensionais prometeu-me em sonhos se eu o libertasse dos grilhões mágicos que o prendem!... Cinco vítimas são necessárias para que o ritual de libertação do Dhegammon seja concretizado. A bela Well foi a primeira, seja você, Paulo, a segunda vítima! Ah, ah, ah!

O tiro disparado tirou a vida de Paulo como um raio da morte. Estirado ao chão, seu cadáver era como um troféu conquistado pela loucura de Henry.

Irado, Linx avançou tentando tirar a arma de Henry, mas este se esquivou, dando-lhe uma coronhada na cabeça de seu adversário, que caiu desfalecido. Celly gritou de terror ao ver que Henry executou Linx, caído ao chão, com um tiro na nuca.

Ato contínuo, Henry apertou novamente o gatilho e atirou nas costas de Celly, que fugia apavorada no matagal.

Agora resta você, Roger! Há uma bala reservada para o seu coração sonhador, meu bom amigo! Ah, ah, ah! Vou matá-lo, Roger! E então o ritual místico de sacrifícios humanos ao Dhegammon estará concluído!

Confesso que tremi quando ele puxou o gatilho da alma que apontava para mim, entre gargalhadas diabólicas.

Percebi que Linx, nas vascas da agonia, conseguira forças derradeiras para apanhar seu canivete, e próximo das pernas de Henry como estava, enfiou a lâmina na panturrilha do enlouquecido, fazendo-o curvar-se de dor.

Antes de morrer, Linx gritou: Pegue ele Roger, mate-o e evite o ritual de sacrifícios ao Dhegammon!

Assim tentei fazer. Travamos uma luta corporal. Desferi-lhe socos e murros violentos. Mas Henry estava enlouquecido, e a loucura proporciona forças de ódio àquele que a aninha em sua alma. Ele me deu uma joelhada no ventre, projetando-me ao chão. Mesmo assim, peguei uma pequena pedra coberta de musgo que havia nas proximidades e lancei-o num dos olhos de Henry.

Maldito! Você me cegou de um olho!, berrou Henry, curvado de dor. Avancei e consegui derrubá-lo. Deus tenha piedade de minha alma. Consegui arrancar sua arma e o atingi mortalmente. Descarreguei o tambor em seu corpo. Antes de morrer ele curvou seus lábios num sorriso insano e murmurou: Tolo Roger, mataste a vítima que faltava...era pra ser tu, Roger, mas que seja eu,então...Agora ele, o Dhegammon está livre mais uma vez...Ah, ah,ah!...Adeus, Roger!... Ó deusa morte, abre os portais do teu palácio e acolhe minha alma!Acode a alma do mistagogo da Ordem dos Adoradores do Dhegammon...Aaaaaarrrggghhhh!...

Um urro aterrador se fez ouvir no bosque. Era ele, eu sabia. Era o Dhegammon se materializando por completo!...

Olhei para o cadáver de Henry, os olhos revirados como que contemplando infinitos reinos do Além. Estava morto! Morto, vagando nas terras do purgatório ou nas sombras do inferno.

Ouvi um novo urro bestial, era o Dhegammon se aproximando, se materializando pouco a pouco no mundo dos
homens!

Com todas as forças de meu ser, gritei enlouquecido de medo e corri, corri como um louco pela mata, atravessando o portão das névoas e voltando às dunas da restinga de onde iniciamos o passeio. Os primeiros clarões da aurora iluminavam meu caminho.

Na rodovia sinalizei para o primeiro carro que passava, felizmente - ou infelizmente - um carro da polícia rodoviária. Eu estava encrencado. Trêmulo, pálido, com um revólver na mão, vomitando de tanto pavor, os policiais me algemaram. Outras viaturas vieram e os corpos de meus amigos foram identificados na mata. Estavam, de fato, mortos.

Perguntei aos policiais se eles tinham visto o Dhegammon. Eles menearam a cabeça, silenciosos, um brilho de piedade nos olhos, como que me achando um louco assassino.

Fiquei muito tempo preso. Agora estou velho e liberto.

Quando anoitece, em minha casa fecho portas e janelas. Pego o rifle que comprei. Não estou paranóico. Apenas tento me proteger daquela coisa, daquela coisa blasfema chamada Dhegammon, que por certo tenta me encontrar. Estarei preparado, venha maldito Dhegammon, eu meterei uma bala em seus olhos cor das chamas do Inferno! Oh, Átila, meu cão, põe-se a latir estranhamente...como se me avisasse de que a coisa medonha me encontrou, finalmente, após longos anos...A porta da casa começa a ser arrombada, é ele, é ele! O terrível, o bestial, o demoníaco Dhegammon!...
FIM

NOTA DO AUTOR: O personagem “Dhegammon” é criação do imortal escritor Henry Evaristo. Os outros personagens são homenagens que fiz a alguns desses fantásticos autores da Irmandade das Sombras.


Postagem de 10/06


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