sábado, março 07, 2009

O Coração Denunciador



Para começar essa nova fase do blog deixo a vocês um dos meus contos favoritos do mestre Edgar Allan Poe



É verdade! Tenho sido e sou nervoso, muito nervoso, terrivelmente nervoso! Mas, por
que ireis dizer que sou louco? A enfermidade me aguçou os sentidos, não os destruiu,
não os entorpeceu. Era penetrante, acima de tudo, o sentido da audição. Eu ouvia todas
as coisas, no céu e na terra. Muitas coisas do inferno ouvia. Como, então, sou louco?
Prestai atenção! E observai quão lucidamente, quão calmamente vos posso contar toda a
estória.
É impossível dizer como a idéia me penetrou primeiro no cérebro. Uma vez concebida,
porém, ela me perseguiu dia e noite. Não havia motivo. Não havia cólera. Eu gostava do
velho. Ele nunca me fizera mal. Nunca me insultara. Eu não desejava seu ouro. Penso
que era o olhar dele! Sim, era isso! Um de seus olhos se parecia com o de um abutre. . .
um olho de cor azul-pálido, que sofria de catarata.
Meu sangue se enregelava sempre que ele caía sobre assim, e assim, pouco a pouco, bem
lentamente, fui-me decidindo a tirar a vida do velho e assim libertar-me daquele olho para
sempre.
Ora, aí é que está o problema. Imaginais que sou louco.
Os loucos nada sabem. Deveríeis, porém, ter-me visto. Deveria ter visto como procedi
cautamente! Com que prudência...com que previsão. . . com que dissimulação lancei
mãos à obra!
Eu nunca fora mais bondoso para com o velho do que durante a semana inteira antes de
matá-lo. E todas as noites, por meia-noite, eu girava o trinco da porta de seu quarto e
abria-a…oh, bem devagarinho. E depois, quando a abertura era suficiente para conter
minha cabeça, eu introduzia uma lanterna com tampa toda velada, bem velada, de modo
que nenhuma luz se projetasse para fora, e em seguida enfiava a cabeça. Oh, teríeis rido
ao ver como a enfiava habilmente!
Movia-a lentamente. . . muito… muito lentamente, a fim de não perturbar o sono do
velho. Levava uma hora para colocar a cabeça inteira além da abertura, até podê-lo ver
deitado na cama. Ah! Um louco seria precavido assim? E depois quando minha cabeça
estava bem dentro do quarto, eu abria a tampa da lanterna cautelosamente. . - oh, bem
cautelosamente! Sim, cautelosamente (porque a dobradiça rangia) . . . abria-a só até
permitir que apenas um débil raio de luz caísse sobre o olho de abutre. E isto eu fiz
durante sete longas noites. . . sempre precisamente a meia-noite. . . e sempre encontrei o
olho fechado. Assim, era impossível fazer a minha tarefa, porque não era o velho que me
perturbava, mas seu olho diabólico. E todas as manhãs, quando o dia raiava, eu
penetrava atrevidamente no quarto e falava-lhe sem temor, chamando-o pelo nome com
ternura e perguntando como havia passado a noite. Por aí vedes que ele precisaria ser um
velho muito perspicaz para suspeitar que todas as noites, justamente as doze horas, eu
o espreitava, enquanto dormia.
Na oitava noite, fui mais cauteloso do que de hábito ao abrir a porta. O ponteiro dos
minutos de um relógio mover-se-ia mais rapidamente do que meus dedos. Jamais, antes
daquela noite, sentira eu tanto a extensão de meus próprios poderes, de minha
sagacidade. Mal conseguia conter meus sentimentos de triunfo. Pensar que ali estava eu,
a abrir a porta, pouco a pouco, e que ele nem sequer sonhava com os meus atos ou
pensamentos secretos…Ri entre os dentes, a essa idéia, e talvez ele me tivesse ouvido,
porque se moveu de súbito na cama, como se assustado. Pensais talvez que recuei? Não!
O quarto dele estava escuro como piche, espesso de sombra, pois os postigos se achavam
hermeticamente fechados, por medo aos ladrões. E eu sabia, assim, que ele não podia ver
a abertura da porta; continuei a avançar, cada vez mais, cada vez mais.Já estava com a
cabeça dentro do quarto e a ponto de abrir a lanterna, quando meu polegar deslizou sobre
o fecho de lata e o velho saltou na cama, gritando:Quem está aí?
Fiquei completamente silencioso e nada disse. Durante uma hora inteira, não movi um
músculo e, por todo esse tempo, não o ouvi deitar-se de novo. Ele ainda estava sentado
na cama, à escuta; justamente como eu fizera, noite após noite, ouvindo a ronda da morte
próxima.
Depois ouvi um leve gemido e notei que era o gemido do terror mortal. Não era um gemido
de dor ou de pesar.. . oh, não! Era o som grave e sufocado que se ergue do fundo da alma
quando sobrecarregada de medo. Bem conhecia esse som. Muitas noites, ao soar meianoite,
quando o mundo inteiro dormia, ele irrompia de meu próprio peito, aguçando, com
seu eco espantoso, os terrores que me aturdiam. Disse que bem o conhecia. Conheci
também o que o velho sentia e tive pena dele, embora abafasse um riso no coração. Eu
sabia que ele ficara acordado desde o primeiro leve rumor, quando se voltara na cama.
Daí por diante, seus temores foram crescendo. Tentara imaginá-los sem motivo, mas não
fora possível. Dissera si mesmo: "É só o vento na chaminé…ou é só um rato andando pelo
chão", ou "foi apenas um grilo que cantou; um instante só. Sim ele estivera tentando
animar-se com estas suposições, mas tudo fora em vão. Tudo em vão, porque a Morte,
ao aproximar-se dele, projetara sua sombra negra para a frente, envolvendo nela a vítima.
E era a influência tétrica dessa sombra não percebida que o levava a sentir - embora não
visse nem ouvisse -, a sentir a presença de minha cabeça dentro do quarto.
Depois de esperar longo tempo, com muita paciência, sem ouvi-lo deitar-se, resolvi abrir
um pouco, muito, muito pouco, a tampa da lanterna. Abri-a - podeis imaginar quão
furtivamente - até, que por fim, um raio de luz apenas, tênue como o fio de uma teia de
aranha, passou pela fenda e caiu sobre o olho de abutre.
Ele estava aberto. . . todo, plenamente aberto. . . e, ao contemplá-lo a minha fúria
cresceu. Vi-o, com perfeita clareza, todo de um azul-desbotado, com uma horrível película
a cobri-lo, o que me enregelava até a medula dos ossos. Mas não podia ver nada mais da
face ou do corpo do velho, pois dirigira a luz, como por instinto, sobre o maldito lugar.
Ora, não vos disse que apenas é super acuidade dos sentidos aquilo que erradamente
julgais loucura? Repito, pois, que chegou a meus ouvidos um som baixo, monótono,
rápido como o de um relógio quando abafado em algodão. Igualmente eu bem sabia que
som era. Era o bater do coração do velho. Ele me aumentava a fúria como o bater de um
tambor estimula a coragem do soldado.
Ainda aí, porém, refreei-me e fiquei quieto. Tentei manter tão fixamente quanto pude a
réstia de luz sobre o olho do velho. Entretanto, o infernal tã-tã do coração aumentava. A
cada instante ficava mais alto, mais rápido, mais alto, mais rápido! O terror do velho
deve ter sido extremo! Cada vez mais alto, repito a cada momento!
Prestais-me bem atenção? Disse-vos que sou nervoso, sou. E então, àquela hora morta da
noite, o bater tão estranho excitou em mim um terror incontrolável. Contudo, por alguns
minutos mais, dominei-me e fiquei quieto. Mas o bater era cada vez mais alto. Julguei
que o coração ia rebentar. E, depois, nova angustia me aferrou: o rumor poderia ser
ouvido por um vizinho! A hora do velho tinha chegado! Com um alto berro, escancarei a
lanterna e pulei para dentro do quarto.
Ele guinchou mais uma vez.. uma vez só. Num instante, arrastei-o para o soalho e virei a
pesada cama sobre ele. Então sorri alegremente por ver a façanha realizada. Mas,
durante muitos minutos, o coração continuou a bater, com som surdo. Isto, porém, não
me vexava. Não seria ouvido através da parede. Afinal cessou.O velho estava morto.
Removi a cama e examinei o cadáver. Sim, era uma pedra, morto como uma pedra.
Coloquei minha mão sobre o coração e ali a mantive durante muitos minutos. Não havia
pulsação. Estava petrificado. Seu olhos não mais me perturbariam.
Se ainda pensais que sou louco, não mais o pensareis, quando eu descrever as sábias
precauções que tomei para ocultar o cadáver. A noite avançava e eu trabalhava
apressadamente, porém em silêncio. Em primeiro lugar, esquartejei o corpo. Cortei-lhe a
cabeça, os braços e as pernas.Arranquei depois três pranchas do soalho do quarto e
coloquei tudo entre os vãos. Depois recoloquei as tábuas, com tamanha habilidade e
perfeição que nenhum olhar humano - nem mesmo o dele - poderia distinguir qualquer
coisa suspeita. Nada havia a lavar…nem mancha de espécie alguma. . nem marca de
sangue. Fora demasiado prudente no evitá-las. Uma tina tinha recolhido tudo… ah, ah,
ah!
Terminadas todas essas tarefas, eram já quatro horas. Mas ainda estava escuro como se
fosse meia-noite. Quando o sino soou a hora, bateram à porta da rua. Desci a abri-la, de
coração ligeiro, pois que tinha eu agora a temer? Entraram três homens, que se
apresentaram, com perfeita mansidão, como soldados de polícia.
Fora ouvido um grito por um vizinho, durante a noite. Despertara-se a suspeita de um
crime. Tinha-se formulado uma denúncia à polícia e eles, soldados, tinham sido
mandados para investigar.
Sorri, pois. . . que tinha eu a temer? Dei as boas-vindas aos cavalheiros. O grito, disse
eu, fora meu mesmo, em sonhos. O velho, relatei, estava ausente, no interior. Levei meus
visitantes a percorrer toda a casa. Pedi-lhes que dessem busca completa. Conduzi-os,
afinal, ao quarto dele.
Mostrei-lhes suas riquezas, em segurança, intactas. No entusiasmo de minha confiança,
trouxe cadeiras para o quarto e mostrei desejos de que eles ficassem ali, para descansar
de suas fadigas, enquanto eu mesmo, na desenfreada audácia de meu perfeito triunfo,
colocava minha própria cadeira propriamente sobre o lugar onde repousava o cadáver da
vítima.
Os soldados ficaram satisfeitos. Minhas maneiras os haviam vencido. Sentia-me
singularmente à vontade. Sentaram-se e, enquanto eu respondia cordialmente,
conversaram coisas familiares. Mas dentro em pouco, senti que ia empalidecendo e
desejei que eles se retirassem. Minha cabeça doía e parecia-me ouvir zumbido nos
ouvidos; eles, porém, continuavam sentados e continuavam a conversar. O zumbido
tornou-se mais distinto; continuou e tornou-se ainda mais perceptível.
Eu falava com mais desenfreio, para dominar a sensação; ela, porém, continuava e
aumentava sua perceptibilidade. . . até que, afinal, descobri que o barulho não era dentro
dos meus ouvidos.
É claro que então a minha palidez aumentou. Mas eu falava ainda mais fluentemente e
num tom de voz muito elevada. Não obstante, o som se avolumava... E que podia eu fazer
era um som grave, monótono, rápido... muito semelhante ao de um relógio envolto em
algodão. Respirava com dificuldade... e no entanto, os soldados não o ouviram. Falei mais
depressa ainda, com mais veemência. Mas o som aumentava constantemente. Levanteime
e fiz perguntas a respeito de ninharias, num tom bastante elevado e com violenta
gesticulação, mas o som constantemente aumentava. Por que não se iam eles embora?
Andava pelo quarto acima e abaixo, com largas e pesadas passadas, como se excitado até
a fúria pela vigilância dos homens; mas o som aumentava constantemente. Oh, Deus!
Que poderia eu fazer? Espumei. . . enraivecido.. . praguejei! Fiz girar a cadeira sobre a
qual estivera sentado e arrastei-a sobre as tábuas, mas o barulho se elevava acima de
tudo e continuamente aumentava. Tornou-se mais alto. . . mais alto… mais alto! E os
homens continuavam ainda a passear, satisfeitos e sorriam. Seria possível que eles não
ouvissem? Deus Todo-Poderoso! Não, não! Eles suspeitavam! Eles sabiam! Estavam
zombando do meu horror! Isto pensava eu e ainda penso. Outra coisa qualquer, porém,
era melhor que aquela agonia!
Qualquer coisa era mais tolerável que aquela irrisão! Não podia suportar por mais tempo
aqueles sorrisos hipócritas! Sentia que devia gritar ou morrer, e agora de novo... escutai...
mais alto... mais alto... mais alto…mais alto!…
- Vilões! - trovejei. - Não finjam mais! Confesso o crime! Arranquem as pranchas! Aqui,
aqui! Ouçam o batido do seu horrendo coração!

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