sábado, setembro 30, 2006





O ESPELHO OBÓVEO
Por Paulo Soriano


Aos amigos Henry Evaristo, Linx, Rogério Silvério de Farias e Alessandro Reiffer.


“Vi mais longe do que era permitido”
Friedrich Nietzsche

- Eu não sou cego de nascença – disse ele, provavelmente afagando as barbas que, supunha eu, a partir do exame de seu caráter, deveriam ser medonhas. – Queres saber como perdi a visão?

Ora, eu não havia perguntado nada e não tinha a mínima curiosidade de sabê-lo. Mesmo assim, ele continuou:

- De certa forma, foi um “suicídio da visão”.

Eu nunca havia ouvido tanta parvoíce em minha vida. Mesmo assim prestei atenção.

- Quem era eu? Um ocultista muito pouco famoso. E, decerto, o mais fiel discípulo de Narciso. Porque, além de alfarrábios cabalísticos, colecionava espelhos tal qual um filatelista renomado disputa selos raros. Em uma viagem a Roterdam, fiquei sabendo da existência de uma relíquia milenar. Era um pequeno espelho oboval que, segundo um respeitadíssimo e honesto antiquário, seria assírio e havia pertencido a Milton e a John Dee. Tratava-se de um pequeno objeto metálico, emoldurado em cedro, de superfície côncava e opaca. Em nada se assemelhava a um espelho. Mirei-me nele, mas o objeto não refletia a minha imagem. “Definitivamente – disse eu ao vendedor –, isto está longe de ser um espelho.” Então ele me confidenciou: “É uma justa constatação. Mas é preciso que saiba o senhor que este espelho não reage à luz. Reage à alma.” Eu era, então – e literalmente –, um homem desalmado, porque nada pude vislumbrar naquela superfície turva. E foi isso o que eu disse ao vendedor. Kelley – assim ele, ironicamente, se dizia chamar – me sugeriu que levasse a preço vão o “raro” objeto (mas que a mim me parecia simplesmente “lançadiço”) e que o observasse em plena escuridão noturna. Foi o que eu fiz.

- Antes de recolher-me – prosseguiu meu singular interlocutor –, apaguei todos os lumes. Nem um bico de gás, nem uma vela me escapou a uma atenta e minuciosa vistoria. Fiquei, portanto, na mais completa escuridão. Olhei para o espelho obovalado e, então, contemplei monstruosidades. Sim, do fundo do objeto veio uma luz tão incisiva, tão extraordinariamente cintilante, que, a um impacto ofuscante, me causou um desequilíbrio d’alma, seguido de uma confusão mental de difícil restabelecimento. O objeto prendeu-se à minha mão como um ímã. E de sua superfície airosa vieram, aos poucos, depois que a luminosidade estonteante arrefeceu, as imagens que o espelho sugava de minha alma, e as recompunha em conformidade com a minha real e íntima aparência. Ah! O choque foi tão profundo que perdi de imediato os sentidos. E, quando despertei, verifiquei, para o meu horror, que o ser hediondo – o ente abominável refletido naquela superfície espectral – congelara-se nas minhas retinas e mergulhara definitivamente em meu cérebro. Não, não peças que eu descreva tamanha monstruosidade e abjeção! Até hoje não enxergo outra coisa senão a terrível imagem, a representação disforme, infame – porém fiel –, de minha desgraçada alma!

Não sei se o homem era louco. Sei apenas que ele se ergueu e, com o tato de sua bengala, percorreu o longo corredor que dava acesso aos livros escritos em Braile. Mas virou-se para mim por um instante e concluiu:

- Tenho inveja da escuridão eterna dos teus olhos. Aqueles meus eu já os arranquei, inutilmente, com os gumes destas unhas. Porque é a minha alma que se reflete e enxerga-se a si própria, como um estigma perpétuo e indelével, e que nem os sonhos logram esvair. Vi mais longe do que era permitido.

3 comentários:

  1. Muito bem escrito o conto, Soriano. Lembrou Lovecraft, mas, é claro, tem o estilo soriano de escrever. Parabéns. Gostei mesmo. E contos curtinhos assim fazem a alegria dos internautas que não gostam de textos longos no monitor.

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  2. Ver eternamente a propria mostruosidade que habita as profundezas de sua alma; gostei cara, um belo fim a muitos por ai. Abração cara e viva a I.S.!

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  3. Mais uma obra de arte sorianística!
    Dizer o que mais?

    PARABENS!!!
    Obrigado pela dedicatória!!!

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