quarta-feira, agosto 29, 2007

O Anão

Por Paulo Soriano

Senhores, ouvi-me!

Peço a vossa permissão para conduzir os vossos olhos a um antro aterrador. E, desde já, imploro vosso perdão pelas cenas infames que, fatalmente, haverão de suceder.

Não, senhores, não vos assustai inutilmente. O lugar para onde vos guio é sobremodo respeitável. Eu vos levo ao salão principal do castelo de Bran, outrora famoso pelas atrocidades cometidas pelo Conde Vlad, mas que hoje se notabiliza pela corrupção de suas estruturas e pela inevitável decadência de suas paredes, tão trôpegas e mesquinhas quanto as almas arruinadas dos que se esgueiram por suas sombras; almas que mal suportam a angústia e a aflição interiores, mas que regozijam-se bem protegidas do furor do verão e das inclemências do inverno. Como a poeira sorrateira, o decesso e a decadência se instauram e se acumulam como se tivessem vida e evoluções próprias. E, espraiando-se em todas as direções, agem sem que sejam notados, até que os tetos se rendam a toda sorte de infiltrações, e das paredes emanem um suor viscoso, uma gosma fétida que juramos exsudar do âmago das pedras e dos tijolos. As poderosas vigas apodrecem como cadáveres. E e os lustres, que decaem como teia de aranha das clarabóias esfaceladas, assumem, quando o dia entenebrece, a aparência sinistra de enforcados.

Hoje, amigos meus, ocorreu um espetáculo aterrador. Agora, o grande salão está vazio. Mas nada me custa recuar alguns momentos no passado.

Há poucas horas, estava o jovem príncipe – belo e terrível – a anunciar o que parecia ser uma maravilhosa diversão. Ao seu lado, a bela Ioana, que partilhava do mesmo sangue principesco, ardia em deleite e excitação. Mas Elisabeta, amante do suserano, aguardava o espetáculo com o coração constrito. Porque a ira do jovem príncipe era famosa. Eram implacáveis os seus desígnios e irreversíveis as suas decisões. Não foram poucos os bobos, saltimbancos e menestréis que feneceram por não terem caído no agrado do príncipe cruel e encantador.

Foi nesta noite que subiu a uma espécie de palco – que para muitos poderia ser o patíbulo –, armado para a especial ocasião, algo nunca dantes visto. Era a mais grotesca das grotescas criaturas. Dói-me descrevê-la. Por isso, senhores, eu vos pouparei das características mais hediondas deste ente pavoroso, desta coisa horrenda, abundante em pêlos, meio homem, meio animal, que, com as suas pernas arqueadas e trôpegas, ensaiou um bailado excêntrico. E eram tão ridículas, tão burlescas e monstruosas as suas evoluções que a pequena platéia – nobres e comensais da corte do príncipe valáquio – sucumbiu a uma espécie de frenesi incontrolável. Agitaram-se pois, os convivas. Riram e macaquearam. Enfiaram-se numa espécie de excitação e de contentamento sórdidos. Gargalharam e motejaram com a fúria de possessos. Ainda posso sentir, a queimar as minhas retinas, as toscas imitações que, no nobre salão, se faziam do pobre homem. Arremedos grosseiros, que acentuavam e excediam as deformidades do pobre anão e ainda mais evidenciavam e expunham a descortesia jocosa de seus aleijões.

Quando o bobo terminou o seu infame bailado, recolhendo os aplausos com os braços abertos e a cabeça humildemente inclinada, consultou os olhos de seu suserano. Então gelou. Pois constatou que, embora a miúda platéia se contorcesse em risos e mofas ruidosamente alegres, tão joviais quanto nefandas, o príncipe permanecia impassível. Ao seu lado, Elisabeta estremecia de aflição. Ioana, satisfeita, ainda bailava e ainda sorria.

A uma única palma de alerta, desferida pelo suserano, toda a platéia emudeceu. Um silêncio mortal caiu sobre a corcova do anão e reverberou no grande salão. E o silêncio inexpugnável permitiu a Elisabeta escutar, com horror, o descompasso que provinha do coração do pequeno homem. Ioana, porém, quase não continha o riso, e, embora lamentasse a brevidade do espetáculo, já antecipava o deleite grotesco, o espetáculo maravilhoso e invulgar que seria o enfocamento de um anão aleijado.

O jovem príncipe se ergueu. Empunhou, com empáfia, a cimitarra, furtada aos otomanos, que lhe que lhe ia à cintura. E, com passos altivos, dirigiu-se ao pequeno homem.

- Vejo que agradaste, com teu corpo desconjuntado e teu bailado ridículo, aos fidalgos desta casa. Mas juro que nada do que vi foi do meu agrado. Antes me causou extrema repulsa e descontentamento.

Ao ouvir tão rudes palavras, pronunciadas com a inflexão de uma sentença de morte, o anão foi ao chão e se pôs a chorar convulsivamente.

A platéia delirou de contentamento. Elisabeta abaixou desoladamente a cabeça. Ioana exultou.

O suserano ergueu a espada. O anão fechou os olhos e, num reflexo, levou as pequenas mãos ao pescoço, aguardando o golpe.

- Mas vejo que, pior ainda, foi a reação de minha platéia. Se o espetáculo do anão foi desagradável, muitíssimo mais torpes e hediondas foram as evoluções caricatas que dele fizeram os meus cortesãos.

Dizendo isto, o príncipe ordenou ao anão que se erguesse e, surpreendentemente, fê-lo segurar a espada.

- Escolhe, dentre os meus, quem irás matar. Diz, dentre todos que aqui estão, quem fez de ti o pior arremedo.

- Sim, senhor! Bem observei quem me imitou com maior ênfase no ridículo. Mas, poupa-me desta sina, porque sou apenas um bobo e não gosto de matar.

- Escolhe, ou não verás a luz do dia.

O anão apontou. E creio que somente eu, que a tudo assistia atentamente, notei uma brevíssima e profunda contração na fisionomia do jovem príncipe. Porque era para Ioana, sua bela irmã, que o anão enristava o indicador.

O suserano arrastou a princesa pelos longos cabelos negros e a depôs aos pés do aleijado.

- Cumpre o teu dever, anão!

Embora pequeno, o homem tinha uma grande força. Porque, com as mãos unidas ao cabo da espada, fez vibrar um único golpe. Os gritos de Ioana cessaram imediatamente. A cabeça da princesa, segregada do corpo, sequer chegou a rolar. Permaneceu onde estava e, em sua imobilidade, conservou o mesmo olhar de pavor que dirigia ao irmão inclemente.

- Eis o teu prêmio e pagamento – disse secamente o príncipe, depositando a cabeça decepada no colo do anão. - Leva-o contigo. E jamais ... nunca mais ponhas os teus pés deformados no castelo de Bran.

Visite o site do Autor "Contos Grotescos"
www.contosdeterror.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário