quarta-feira, agosto 15, 2007

O Retorno do Gárgula

Por Arcano Soturno

O Gárgula tenta voar de volta para seu lar, mas está fraco demais. E a tempestade de neve paralisa ainda mais seu corpo ferido, corpo surrado que abriga sua alma sofrida...
E bem alto, entre as nuvens, o Gárgula percebe que não pode lutar contra a natureza. A força da tempestade é monstruosa, os ventos cortantes e gélidos certamente o matarão.
E num ímpeto de sobrevivência, o Gárgula gira em torno de si mesmo e joga-se no abismo. Com suas asas recolhidas, e com o rosto virado para o abismo, ele cai numa velocidade espantosa. O vento arranca lágrimas de seus olhos.
A queda se aproxima...
Mas quando o chão se aproxima, ele abre novamente suas asas e aterrissa suavemente. O frio continua intenso, seu corpo congela sob a neve.
E encolhido, abraçando a si mesmo, ele caminha com dificuldade.
O frio, a neve, o vento gélido da tempestade... o Gárgula quase não enxerga. É difícil caminhar de volta ao lar. Tudo é frio, mas ele caminha, porque dentro dele uma dor o aquece.
É a dor do arrependimento.

Será que ela o aceitará de volta?
Desde que partiu, afirmando nunca mais voltar, o Gárgula não consegue tirar Natasha de sua cabeça. A sua rainha eterna, o seu único amor, sua deusa... Natasha...
Caminhando com dificuldade sob a intensa neve, ele lembra dos acontecimentos, as cenas que não lhe saem da cabeça.
Natasha abraçada ao seu prometido rei, o príncipe que surgiu do nada e permaneceu abraçado a Natasha, diante dos olhos do Gárgula...
Do Gárgula, que feito de pedra, nada podia fazer. Apenas olhar, enquanto seu coração doía sem o Gárgula entender o motivo daquela estranha dor, já que seu coração é de pedra...
E o Gárgula decidiu procurar a liberdade, voar para novos horizontes. Mas esquecer Natasha nunca foi possível. Assim como nunca foi possível esquecer o abraço dela com o príncipe.
E a dor o acompanhava por onde quer que ele fosse.
Era bom voar por outros lugares, sem ter seu corpo petrificado. E apesar de ter um coração de pedra, o Gárgula tinha um corpo de carne e osso.
E apesar de, mesmo com o corpo de carne e osso, seu coração sempre foi de pedra, e mesmo com o coração sempre sendo de pedra, ele sentia a dor.
Mesmo com o coração de pedra, ele sentia a dor...
E agora caminhava sob a intensa tempestade de neve, de volta para Natasha...
Não só seu coração, mas seu corpo todo estava ferido, castigado pelo tempo. Mas o Gárgula não se importava, pois dor maior estava no seu coração.
E ele voltava, prosseguindo irredutível em seu caminho, apesar de caminhar com dificuldade.
Sua cabeça estava confusa, ele já não sabia bem o motivo de seu retorno. A tempestade estava deixando o Gárgula meio fora de si, sem controle de seus pensamentos, de sua sanidade.
O Gárgula queria se livrar da dor em seu coração. Será que estava voltando para matar Natasha?
Dessa forma, matando-a, eliminaria a nódoa que tanto dilacerava seu coração. Mas será que eliminaria as lembranças, o remorso?
Será que eliminaria o maldito sentimento de perda, o maldito sentimento de nunca ter tido a chance de possuí-la, com ela tão perto, tão próxima de seu coração, a ponto de ele ser o escravo dela?
O seu eterno devoto, que não suportava a dor de imaginar que aquele abraço... era seu. Pertencia-lhe por direito, mas foi dado a outro.
Todos esses pensamentos, misturados às lembranças, vinham em sua mente enquanto caminhava de voltar ao lar. De volta para Natasha.
Cansado, ferido, quase morrendo. Ele retornava para aquilo que realmente o matou.
E finalmente ele chega, percorre um longo desfiladeiro, quase caindo no mar, no abismo que dava para o mar, tamanha era a força da tempestade.
Percorreu o longo desfiladeiro até ficar de frente para o castelo. Um grande castelo cujo fim quase não se podia ver, tamanha era a altura.
Mas era necessário voar até ele. E o Gárgula já não tinha forças para voar.
E para entrar no castelo, era necessário esperar a ponte baixar.
As águas do mar que separavam o castelo do desfiladeiro só podiam ser ultrapassadas pela ponte, e era necessário que a ponte fosse baixada para se chegar aos portões imensos do castelo.
Natasha controla a ponte. Ela controla o castelo.
E ela sempre sabe quem se aproxima.
Será que o receberia de volta? Será que o acolheria novamente em seu lar?
Depois de tanto tempo, será que Natasha perdoaria o Gárgula por ele tê-la abandonado?
A ponte baixa.
O Gárgula, já quase sem forças para andar, percorre a ponte e entra no monstruoso castelo.
Está no conforto de seu antigo lar. O castelo de Natasha.
O castelo é o coração de Natasha, e o Gárgula sente novamente o calor do coração dela...
Então ele sobe os degraus, milhares de degraus. Mais uma longa jornada para o Gárgula, dessa vez para chegar até Natasha, e finalmente resolver o assunto que deixou para trás...
Natasha, no alto do castelo, contempla a tempestade. Olhar sereno, misterioso, distante...
Com seu longo vestido vermelho, com panos vermelhos que desciam pelas torres do castelo, como sangue a ondular nas rochas frias, seguindo o movimento da tempestade.
E parecia sangue o que o Gárgula via ao seu redor. Descendo em linhas sobre as paredes ao redor das escadas de pedra. Como veias a percorrer o castelo, envolvendo o Gárgula.
E ele sentia nessas linhas vermelhas todo o sentimento de Natasha.
Era arrependimento.
Arrependimento de ter toda a paixão que a vermelhidão de seu sangue pode ter, mas de não ter o amor que só o Gárgula podia ter.
Natasha não tinha controle sobre sua paixão, e eternamente apaixonada ela fazia ondular e envolver com seu sangue todo o castelo de rochas gélidas, abraçando e aquecendo o castelo com sua imensa vermelhidão de veias cheias de paixão.
Ela queria que o Gárgula, agora, entendesse que ela era escrava de algo muito pior: sua paixão. E que sofria por esse terrível destino que não podia controlar.
Quantas vezes ela desejou o amor... e quantas vezes ele escapou...
Não era a primeira vez!
Era o terrível amor, que mesmo que ela se esforçasse para tê-lo, sempre escaparia de suas mãos. Porque ela nunca, durante todos esses anos, nunca se dedicou a ele. E assim, o amor agora a tratava como a uma desconhecida...
E o Gárgula, subindo os milhares de degraus do castelo, vai compreendendo todo o pensamento de Natasha, através das veias que o envolvem enquanto ele sobe.
E quando finalmente chega ao encontro de Natasha, ela continua virada para o horizonte. E o Gárgula se aproxima por trás dela.
Ela sente.
Ele sente.
Todo o sangue, toda a vermelhidão, toda aquela paixão... é tudo o que o Gárgula precisa para manter-se vivo.
E compreendendo sua natureza de Gárgula, ele passa por ela, sem nem ao menos olhá-la, e volta ao seu posto na beira do castelo. Tornando-se pedra novamente.
Voltando a guardar e proteger o castelo e seu maior tesouro: Natasha.
Até o fim dos tempos.

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