terça-feira, julho 27, 2010

A Criatura do Mar




Por Paulo Soriano

Não sei como sobrevivi. Se é que sobrevivi verdadeiramente.

O Urano, um galeão de bandeira grega, saíra do porto de Roterdã com destino às Antilhas, com escalas em Lisboa e nos Açores, mas foi surpreendido por uma tempestade, a poucas milhas do arquipélago. O dia estava claro e o ar diáfano. Respirava-se uma atmosfera luminosa e pura. Mas, de repente, do nada veio uma neblina fria, pegajosa em seus múltiplos tentáculos, que engolfou o galeão como a mão de um deus inclemente. E depois veio a chuva, uma chuva áspera, pesada, e contínua, encontradiça apenas nas regiões mais agrestes e desoladas dos trópicos. Então ribombaram trovões. Os raios retalharam a neblina como finíssimas garras nervosas. Sentimos todo o casco estremecer, perfurado pelos gumes afiados dos arrecifes angulosos. O casco rompeu-se docilmente, como se a sua substância fosse tênue como o invólucro de um ovo. A água jorrou por todos os lados e eu fui violentamente arremessado ao mar. Embora fosse dia, a névoa densa convolava tudo em treva, e foi com muita sorte que consegui segurar-me a um barril de vinho em que um velho companheiro já havia buscado refúgio.

A tempestade amainou, mas o ar continuava saturado pela neblina fria. O mar estava incrivelmente calmo, mas não nos era admitida a projeção de um olhar capaz de perfurar a espessura de toda aquela névoa. Nada mais se enxergava. Mas, de longe – muito longe, supúnhamos –, o vento trazia uma canção melodiosa, cuja origem nos parecia um mistério tão espesso quanto o eram as brumas circunstantes. Quando, finalmente, a treva se dissipou, tão inesperadamente quanto viera, eu e meu companheiro constatamos que não estávamos sós. Com horror, verificamos, aos poucos, que muitos corpos flutuavam no espelho d’água, bem próximos de nós. Eram marinheiros do Urano e todos eles traziam, singularmente, as cabeças decepadas. Os corpos desolados exibiam os pescoços cruelmente dilacerados. E não nos e era possível estimar a dimensão das mandíbulas que produziram tamanha aberração.

Anoitecia. Oh, como era linda a moça que vinha ao nosso encontro, em seu bote gracioso, para nos salvar! Com que elegância e delicadeza nos estendeu os braços brancos e majestosos! Com que cuidado deu-nos água, vinho e pão! Era ela diáfana como o orvalho da primavera e longos eram os seus negros cabelos, que a brisa enfunava com uma meiguice sem fim. Vestia uma túnica branca, como de deusa grega, que descia do colo e lhe escondia completamente os pés.

Quando a noite veio, repleta de luar, a nossa salvadora acendeu o lume e nos cantou maviosamente, como nos cantaria uma sereia. Quando meu companheiro adormeceu, a musa chamou-me a si e me selou com um beijo calmo e profundo. A princípio doce, saboroso, seivoso... Mas a seiva azedou, ganhou uma consistência de uma gosma, repugnante como o sabor de ostras apodrecidas. Nauseado, o meu companheiro despertou. Fora a intensidade do cheiro pútrido, de criaturas marinhas decompostas, que a mulher exalava, que o fizera acordar-se. A verdade é que eu queria me desvencilhar da criatura, mas não podia. Estava preso a ela como ostras incrustadas nos cascos de navios avoengos. Então a coisa me repeliu. Avançou para o meu amigo, engendrando um bote assustadoramente rápido e eficaz. Seus olhos, que agora eram dois imensos globos de azeviche, refletiram o grito inerme do meu companheiro. E da fralda de sua túnica escapuliu, pesadamente, a cauda de peixe, a mesma cauda que ela tão bem escondera de nós, mas que agora, em sua excitação, pôs-se a abanar num ritmo frenético. Percebi, na luninescência que o candeeiro irradiava, que a pele da coisa se rompia, rasgava-se em tiras, desnudando malhas de escamas sobrepostas, fortemente unidas entre si, mas maleáveis, escuras e fétidas. Seu rosto se fazia bojudo, opaco, guarnecido de fortes e salientes mandíbulas, encrespadas por dentes anavalhados. Então aquilo distendeu assustadoramente os maxilares, de onde escorria uma gosma fétida, e, num assalto voraz, lacerou a cabeça de meu amigo. Com horror, vi que a coisa se punha a mastigar e a engolir ruidosamente, com uma voracidade somente comparável ao deleite que o triturar do crânio lhe produzia.

Depois, a coisa atirou-se ao mar. E, enquanto lentamente se afastava, a Lua me permitia ver que a sereia retomava, aos poucos, do púbis para cima, a bela forma de mulher.

Novamente anoitece. A brumas vieram e agora se dissipam. Estou trancafiado num catre de um pequeno barco pesqueiro. O mesmo que me recolheu, há dois dias. Julgam-me louco. Não me ouvem. Mas, como eu gostaria de gritar aos homens do bote salva-vidas – que consigo divisar da escotilha esfumada desta cela imunda – para que não se aproximem aquela mulher. “Oh! – eu diria – Não socorram aquela coisa de túnicas brancas e cabelos negros! Oh, não socorram o demônio cruel que, como um anjo indefeso, clama por socorro em um bote à deriva!”


Postagem de 10/06


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