quinta-feira, julho 15, 2010

Morte Absoluta




Por Paulo Soriano


Daqui, onde estou, consigo divisar os muros da cidadela. Eles se elevam rudemente a partir de uma grande rocha, que, incrustada no cerne de uma áspera colina, mergulha subitamente num abismo profundo e desolador. Lá embaixo, lançando-se furiosamente contra os rochedos pontiagudos, as águas cálidas e espumantes de um mar sombrio enroscam-se nas fraldas da falésia com o cingir viscoso de uma víbora ondulante e traiçoeira; e, do alto do pináculo, que domina a grande praça, posso ouvir o seu monótono burburinho.
Vejo, perfeitamente, com o único olho que me resta – o outro está irremediavelmente fechado –, o pórtico de entrada, que agora se encontra completamente aberto. Em uma das colunas jônicas, que sustentam o portentoso teto de pedra de cantaria, o meu companheiro de gatunagem encontra-se preso em uma gaiola. Sei que ele ainda está vivo, porque o vejo, vez por outra, deixar cair uma das pernas por entre as grades da pequena jaula oblonga. E ele balança aquela perna esquálida, aquele punhado de osso revestido de pele flácida, como se estivesse a agitar a sede imensa. A sede a que fora condenado a padecer até que a morte adviesse. Mas eu o invejo no seu destino. Gostaria imensamente de estar cumprindo aquela pena infamante, de estar dependurado numa daquelas gaiolas mal-cheirosas que servem de macabro ornato à entrada decrépita da cidadela. Sei que, vez por outras, algumas beatas dão-lhe furtivamente um punhado de água e atiram-lhe poucas migalhas de bolachas duras e mofadas.
De quando em quando, alguém passa por mim e me esbraveja alguns escárnios. Cuspiria em minha face se me pudesse alvejar. Daqui de cima, com o meu único olho disponível, não enxergo o seu semblante iracundo; mas os meus ouvidos ainda estão apurados o suficiente para escutar e discernir a natureza dos impropérios que a mim se elevam. Estou em exibição, não sei há quantos dias, justamente para isso.
As moscas não me incomodam mais. Acostumei-me a elas. Temo apenas que uma beata piedosa escale a escada corrediça, e, por compaixão, feche-me o outro olho. Não gostaria de cair de vez na escuridão.
Mas eis que o verdugo vem subindo o cadafalso. Ele me olha e faz justamente o que eu mais temia. Não por piedade, mas por dever de ofício. Um ofício que ele cumpre muito bem. Ninguém melhor do que eu para saber disso. Agora eu não vejo mais nada. Apenas sinto que ele me suspende pelos cabelos desgrenhados, eleva-me à altura dos seus olhos, e me lança uma merecida escarrada na testa. Depois, atira-me sobre os ombros com indiferença, e leva-me consigo com a praticidade de quem conduz um simples bornal de caçador. Não sei para onde ele vai me conduzir. Eu agora sou um pingente lúgubre em suas mãos de carrasco. O que resta de meu destino – e isto nem um pouco me apavora – está nas mesmas hábeis mãos que empunharam a foice sobre o meu pescoço. Não sei se ele me enterrará. Ou se me lançará falésia abaixo, ao encontro do mar borbulhante. Para mim, tudo isso é indiferente. O meu pavor é outro. Aos poucos, sinto-me privado dos sentidos, mas não da consciência. Em breve serei apenas consciência atirada num fosso escuro e perpétuo, num precipício de silêncio e imobilidade absolutos, onde o tempo recusa-se a fluir. Até quando permanecerei assim? Até quando estarei prisioneiro de meu crânio, escravo de meus próprios pensamentos? Queira Deus que a morte exista. Queira Deus que me sobrevenha a morte absoluta.

Postagem de 09/06


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Um comentário:

  1. Paulo Soriano, Acabei de ler seu conto Morte Absoluta, e achei bem interessante a forma que você brincou com as palavras para pintar um cenário tão mórbido. Atualmente estou procurando contistas para integrar a Antologia pacto de Monstros 2 que será lançada pela Editora Multifoco. Acaso fique interessado, posso mandar o regulamento da Antologia para você.
    Grata pela atenção,
    Rúbia Cunha ou Tyr Quentalë, como desejar.

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