segunda-feira, julho 19, 2010

Os Ventos do Urrador


O Autor, militante da literatura fantástica, já não se encontra mais entre nós. Posto esse conto, antes já postado nesse blog no começo de sua existencia, como uma forma de manter sua imagem sempre presente e sua obra ao acesso do público.

Por Henry Evaristo

Na tarde em que os primeiros ventos gélidos do inverno sopraram das cordilheiras de Haszdan caminhei com meu velho pai pelos campos e morros de nossa ancestral propriedade. O cinzento do dia e a fina camada de água que nos atingia, umedecendo nossos rostos alvos e nossas vestes negras, nos impeliam a falar de fantasmas e monstros. Como era agradável estar de volta àquele lugar na companhia de uma figura tão majestosa como a daquele ancião encurvado e encarquilhado, ouvindo as velhas estórias que um dia acarinharam e embalaram as noites dos meus tempos de criança! No entanto, agora, os lábios ressecados e encolhidos deste senhor não traziam mais palavras imbuídas da mesma segurança aconchegante de outrora quando o fogo ardendo na lareira, de onde chegava o suave crepitar da madeira em combustão, ou as pesadas portas de carvalho com tramelas, nos separavam das coisas negras do mundo. Antes de tudo, suas frases emanavam no ar sensações macabras; sentenças de medo sobrenatural.

De seres malditos falou meu pai em meio a tarde invernal. Criaturas monstruosas habitantes dos poços e bosques que nos rodeavam; comedores de carnes e almas humanas que se arrastavam e se espojavam encobertos pelas trevas e brumas dos pântanos longínquos. Coisas negras, amortalhadas e flácidas que saltavam de suas tocas, fossas e abismos para avançarem sobre os cadáveres decompostos dos cemitérios da região no esquecimento da noite, na escuridão.

Ai de mim! Jamais poderei esquecer aquela tarde em que o frio parecia me envolver como o abraço da morte que vai penetrando a pele e, esmigalhando ossos e órgãos, avança como um verme dos lamaçais pútridos do Tártaro*.

"Menino!" Disse o velho quando atingimos o cume de uma elevação cujos limites chocavam-se abruptamente com uma lúgubre floresta de árvores negras retorcidas. “Quero hoje, agora que já me encontro no fim desta existência terrena, que você conheça um pouco dos mistérios do lugar em que nasceu". Dito isso, olhou ao redor parecendo então concentrar as vistas em algum ponto perdido no horizonte. Depois, agarrando meu braço com suas débeis mãos, fez sinais para que sentássemos no chão. Enquanto um sol pálido e encoberto começava a rumar para o firmamento enregelado e uma neblina espessa surgia vindo, quem sabe, dos confins dos bosques, ele suspirou e começou:

"Neste lugar, ao qual chamam floresta Malgred, habitam, desde tempos imemoriais, forças que estão além da compreensão e da aceitação humanas. São seres malévolos, visíveis ou não, que se esgueiram livremente por entre as árvores e no fundo das cavernas mais profundas. Alguns estão aqui por opção e se mantém reclusos e quietos, porque em exílio ou retiro, mas outros, os que foram trazidos à força de suas insondáveis vastidões infernais, estes não têm e não querem paz. São os diabólicos resultados dos feitiços e das conjurações deste povo oriental que aqui se estabeleceu quando estas matas escuras ainda dominavam toda a região. Estes, sim, são malévolos! Coisas demoníacas que se escondem dos vivos e a estes odeiam tanto que desenvolveram, ao longo dos séculos, um apetite voraz por suas carnes. Você mesmo ouviu em sua infância as inúmeras estórias sobre os diabos dos bosques de Zalees; esta nossa famigerada cidade que foi criada sob as cinzas das maldições da santa inquisição. Pois eu lhe asseguro, agora que já não tenho muito mais pelo que esperar e o fardo deste maldito conhecimento me fustiga as costas como nunca: Estas abominações são todas reais e estão aqui, agora, nos rodeando e nos espreitando como um leão faminto nas savanas da África. E nós somos suas presas, todos nós, os humanos, pois seu poder quer emanar daquí para o mundo e, para isso, espera apenas o tempo correto."

“Ouça!" Disse meu pai voltando-se novamente para as negras matas distantes que desciam das cordilheiras enevoadas, de onde brotava agora uma estranha ventania. Continuou, então, num tom desolador. " Estes ventos são para nós. Sopram das más intenções destes lugares esquecidos. São os ventos do urrador que chegam a açoitar nossos cabelos. E só isso basta para que nos tornemos parte de sua maldade."

De repente vi estender-se no céu uma terrível mancha escura e como que uma pressão absurda atacou meus ouvidos. Do lado oriental de toda aquela imensidão fria vinha, agora, trazida pelo ar, uma espécie de voz lamurienta; como se fossem milhares de criaturas em terrível agonia que se auto-comiseravam em uníssono.

Olhei apavorado para o velho e ele estava, ao mesmo tempo, sorrindo e chorando. E de seu lábios ressecados pelo tempo e pelo horror pareciam saltar curtas palavras que para mim soavam desconexas e sem sentido ao passo que para ele pareciam ensejar uma espécie de rito ou oração visto que, ao pronunciá-las, fazia sinais mágicos com as mãos em riste. Eu, atônito, começava a sentir toda a minha racionalidade explodindo diante do impossível enquanto que do céu medonho parecia baixar sobre nossas cabeças o presságio de mil caretas de demônios escondidas por entre as nuvens.

Sem saber o que fazer, dobrei os joelhos e juntei-me ao ancião, quase caindo sobre sua figura magra e abatida. Porém, ao procurar aproximar meus ouvidos de seus lábios, a fim de tentar entender o que ele apenas balbuciava seu hálito atingiu em cheio meu rosto provocando uma inevitável onda de náuseas junto com uma constatação terrível que me destruiu por completo. Uma baforada fétida, de coisas hediondas em decomposição, era o que brotava da fenda escura que se tornara sua boca, e seus lábios, antes apenas pálidos, estavam agora roxos e intumescidos, com um aspecto flácido merecedor do mal-cheiro que exalava. Não era mais meu pai, aquela coisa que diante de mim se prostrava. E vi quando de suas costas saltou um bando asqueroso de vermes que pareciam brotar como uma praga das bordas de sua camisa.

Aquela criatura limitou-se a lançar-me um olhar malicioso; uma expressão tão horrenda de sarcasmo e malevolência se estampara em seu semblante que mal pude manter-me encarando-a. Foi quando me voltei para o lugar de árvores retorcidas e avistei, parada, ao longe, uma figura de pesadelo. Envolta em neblinas que desciam de cordilheiras distantes e espectrais, parecendo, ela mesma, tão terrível quanto tudo o que eu já ouvira naquela tarde, estava uma sombra imensa, parada na borda da floresta como alguma divindade que saltasse de bosques oníricos para assaltar o mundo dos mortais. No mesmo instante tive plena certeza de que era dela que brotava o lamurio vindo com o vento.

Subitamente senti um puxão em minhas roupas e o apertar de mãos vacilantes se fechando em torno de meu braço. Virei-me e lá estava de volta meu velho pai, caído ao chão e tentando sofregamente buscar ar em seus pulmões combalidos. Atirei-me sobre ele tentando desesperadamente ajudá-lo a respirar, mas tudo o que fiz restou em vão, pois sua vida não mais a este mundo pertencia. Sua hora chegara ali, naquele lugar condenado e esquecido, onde coisas execráveis faziam suas tocas e esperavam pacientes a hora certa para imporem suas vontades.

Como um animal assustado meu pai olhou-me nos olhos e até hoje suas últimas palavras retumbam em meus ouvidos deixando-me com os nervos abalados em noites em que o vento sopra e assobia nos cantos escuros e carcomidos das paredes da nossa antiga propriedade.

"Agora sois quem guarda o segredo destas matas. É tua a obrigação de guardá-lo bem e transferi-lo aos teus para que nunca se aventurem pelos bosques remotos. Quando as coisas vierem, no meio da madrugada nevoenta, elas procurarão primeiro o portador deste conhecimento maldito e, sejas tu ou teu filho ou teu neto, deve estar pronto a servi-las como está predito, por força de maldição, no inferno. Este é o desígnio que te passo, ó filho meu, com pavor e por obrigação, pois te digo, agora que o oblívio já me alcança, que aqueles velhos feiticeiros orientais que abriram as portas deste mundo às potências do inferno eram também meus ancestrais."

Dito isso, se foi o homem e restei eu, agora único sobre esta terra a sustentar o abominável fardo. Mesmo passados trinta anos daquela tarde invernal, por trás de meus olhos cansados ainda se esgueira a imagem da terrível aparição; A sombra horrenda que sorriu para mim de seu recanto na floresta e depois me deu as costas para voltar ao interior escuro dos bosques deixando atras de si um rastro de árvores retorcidas. Ainda me doi a cabeça ao lembrar de sua careta diabólica reproduzida nas faces mortiças de meu ente mais querido.

Hoje estou velho e meu neto brinca inocentemente nos jardins cinzentos. Em breve terei de partir, mas antes devo levá-lo até as colinas e confiar-lhe o que um dia me foi confiado passando-lhe assim a maldição que se abate sobre nossa miserável família. Às vezes avisto sombras correndo por onde ele corre e figuras malignas saltando por onde ele salta. Estará se aproximando a hora fatídica dos homens do mundo? Estará chegando o dia da divisão desta terra com as entidades imundas? Em breve serão entre nós as legiões do urrador das matas e poços; As coisas negras das missas sacrílegas. Ainda estaremos aqui quando vierem e, por certo, não teremos para onde fugir. Nos subjugarão e apavorarão. E comerão nossas almas.


*- Tártaro: inferno mitológico grego


Postagem de 10/06


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